Carne Trêmula é o Anti-Almodóvar

Victor nasceu num ônibus. Numa festa, conheceu Elena — que, drogada, tirou-lhe a virgindade; dando-lhe também telefone e endereço. Victor se apaixona por ela e, num sábado, invade-lhe o apartamento. A vizinhança, alarmada, avisa a ronda. Victor atraca-se com policial e promove um disparo — que lhe garante seis anos de prisão e um elaborado plano de vingança; que quase se realiza a contento.

Elena é de família abastada. Viciada, vive sozinha em seu apartamento. Num sábado à noite, enquanto, sôfrega, espera por seu traficante, tem seu domicílio invadido por um rapazola — que diz tê-la possuído no fim-de-semana precedente. Diante da insistência do sujeito, que depois de alguns "nãos" se mostra inconveniente, Elena saca seu revólver e lança-se em embate contra ele. Perde o controle, termina como refém — e é salva por um policial, que atingido no tiroteio, torna-se paraplégico. Encantada com seu salvador, casa-se com ele.

David é parceiro de ronda de Sancho — um homem descontrolado, bêbado e violento. Numa noite, em que socorre uma jovem viciada, pretendendo também proteger Sancho de um corpo-a-corpo com um delinqüente, David acaba alvejado e paraplégico. Com a vida desgraçada, vai buscar apoio no basquete (para deficientes) e na exemplar dedicação de sua esposa Elena.

Essa é a base da trama do novo filme de Pedro Almodóvar: "Carne Trêmula". Agora, imagine contar essa história — e seu surpreendente desfecho — a partir de um único foco narrativo, numa seqüência de elaboradas situações, de contraditórios personagens e de coincidências intermitentes. Foi o que fez, com grande êxito, o diretor espanhol mais consagrado do momento.

O longa, em si, revela-se perfeito.

Tão perfeito que o Almodóvar de antes mal caberia nele. E aí coloca-se o problema: o disparatado diretor que nos divertia com seu nonsense, com seus arroubos sexuais e com sua plástica eloqüente, acabou cedendo aos apelos da pasteurização hollywoodiana, enquadrando-se em padrões que, dentro em breve, não nos permitirão distinguí-lo de seus asseclas de Norteamerica.

Pedro caiu no fosso de todo artista que se considera mais maduro, mais sereno. "O radicalismo não me interessa mais", afirma, mergulhando de cabeça no Mercado e sacrificando algumas de suas posições e crenças. Embora mantenha a qualidade, que lhe é inerente, abdica de traços fortes de sua personalidade — a fim de sair do "gueto" das produções alternativas, conquistando mais salas de cinema. Almodóvar quer, afinal, brilhar tanto quanto algumas das vedetes de origem latina que "fizeram" a América; entre elas, Andy Garcia e, obviamente, seu enfant terrible Antonio Banderas.

Sua roteirização continua absurda e surpreendente — mas adquiriu um caráter tão sério, tão denso que bota qualquer um arrasado do meio do filme pra frente. Em vez de leve e sorridente, o espectador sai da sala desconjuntado, trôpego — graças ao realismo insultante das novas tragédias madrileñas. Ao reduzir o teor cômico de "Carne Trêmula" a quase zero, Almodóvar realçou de tal forma a brutalidade e a selvageria — que suas histórias de amor passaram de excêntricas a exasperantes ao extremo.

Se você planejava rir com Agustín y Pedro, de hoje em diante, trate de esquecê-los.

A concepção dos tipos humanos continua rica e inteligente. As personagens, porém, estão amargas, vingativas, virulentas. Impossível encaixar, por exemplo, Victoria Abril em qualquer papel de "Carne Trêmula"; logo ela — que não consegue esconder sua graciosidade e sua alegria, mesmo nos momentos mais estridentes. María Barranco, então, nem pensar; suas feições angulosas e anti-estéticas tirariam do drama tudo o que ele tem de convincente.

Somos levados a crer que Almodóvar anda enjoado de si mesmo. Cansado de gerar polêmica, partiu para a unanimidade, e para o conforto econômico-financeiro. Cansado de ser tomado como burla, piada, brincadeira, resolveu retratar o submundo, a periferia, a marginália — sem concessões, sem complacência; em tom de "duela a quién duela" (como bradava o empichado presidente).

Antes de partir para o "fogo contra fogo", no entanto, é preciso retomar o célebre dito de Machado, segundo o qual, "a vida é uma ópera bufa com intervalos de música séria".

Veja bem, ó Pedro: intervalos de música séria. Nada de querer passar lições de maturidade e de comprometimento — com os infortúnios de outrem. De realidade e de política, já estamos todos cheios.

Pense melhor e deixe pra lá os grandes estúdios dos U.S.A.; se é para continuar chafurdando na aridez e na esterilidade, pra quê eles precisariam de você?

J. D. Borges