Todos os Lados do U2

Em outubro de 1988, o inseparável quarteto irlandês U2 lançava seu petardo "Rattle and Hum", encerrando uma era pautada por rocks ortodoxos, com motivações políticas, e por baladas de apelo forte, carregadas de inspiração juvenil.

Ideologicamente ingênuos (ou não), musicalmente contidos (ou não), um descompromissado passeio pela compilação de sucessos "The Best of 1980-1990", nas lojas desde o dia 3 de novembro, revela que Bono Vox, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen marcaram época no Pop-rock mundial. Qualquer um que tenha vivido a trilha sonora das rádios do planeta, nas últimas duas décadas, sucumbiu — nem que por uma única vez — ao seu charme.

À parte a guinada mercadológica que se seguiu com "Achtung Baby", a coletânea "The Best of" ergue-se incontestável em meio à controversa discografia da banda. Afinal, como negar "Pride", "New Year's Day", "With or Without You", "Sunday Bloody Sunday", "Where the Streets Have No Name", "Desire", "When Love Comes to Town" e "Angel of Harlem"?

Este é o momento em que as atenções de velhos e novos fãs convergem para um único álbum. Este é o momento em que o "U2 dos Anos Noventa", exultante do comercialismo irrefreável e da incessante inovação tecnológica, volta seus olhos para trás — e faz reverência.

A coleção se coloca estrategicamente no limite entre o oportunismo reprovável e a sagração legítima. Se a lista de hits fisga obviamente os recém-iniciados, o conjunto de B-sides (presente apenas na edição limitada) serve como chamariz para os admiradores de longa data.

You D-side.

Lado A

Na seção "parada de sucessos" temos um belo apanhado do que há de mais representativo nos discos da primeira fase do grupo.

De "Boy" (1980), consta a pós-punk e acelerada "I Will Follow", um hino quase-adolescente: "A boy tries hard to be a man, his mother takes him by the hand/ If he stops to think, he starts to cry."

Do clássico "War" (1983), temos as unânimes "Sunday, Bloody Sunday" (consagração da pulsante bateria de Larry Mullen) e "New Year's Day" (inesquecível introdução de guitarra, baixo e teclados). Ambas com preocupações ideológicas (muito embora pouquíssimos seguidores do U2 saibam a quais episódios essas canções se referem, pensando tratar-se de love songs convencionais). Ambas introduzem a eterna preocupação "midiática" de Bono e seus confrades: "When fact is fiction and T.V. reality", "The newspapers say, say, say it's true".

"The Unforgettable Fire" (1984), com inesperada produção de Brian Eno e Daniel Lanois, é representado por "Pride" e "Bad" — afirmações definitivas da guitarra minimalista de The Edge; preocupações libertárias do letrista: "Free at last" (refrão martin-luther-kinguiano), "If I could through myself/ Set your spirit free". Não se esqueça também da agradável música-tema — orquestrada e profética.

Do recordista em vendagem, "The Joshua Tree" (1987), encontramos a irresistível força romântica de "Where the Streets Have No Name" (We're still building/ Then burning down love/ .../ And when I go there/ I go there with you/ It's all I can do), a panorâmica e resignada "I Still Haven't Found What I'm Looking For" (I have climbed highest mountain/ I have run through the fields/ .../ I have run, I have crawled/ I have scaled these city walls/ .../ Well, yes, I'm still running). Em realce o apuro vocal e emocional de Bono, que passou a comover multidões.

O multi-platinado "Rattle & Hum" (1988) é o rei das aparições em "The Best of". Começando pela ritmada e aérea "Desire" (Lover, I'm on the street/ Gonna go where the bright lights/ And the big city meet), elaborada alternação de guitars and drums, com direito a uma saborosa gaitinha no final; passando pela viril "When Love Comes to Town" (I used to make love under a red sunset/ I was making promises I was soon to forget), com impagável aparição do Blues Boy King; celebrando com a metalizada "Angel of Harlem", uma homenagem descritiva ao bairro e à própria cidade de Nova Iorque; findando com a melosa e declarativa "All I Want Is You" (But all the promises we make from the cradle to the grave), uma pretensão quase-sinfônica dos Quatro de Dublin.

Lado B

Quem aprecia raridades, vai se deliciar com os B-sides. Quem, no entanto, for mais exigente encontrará uma montanha-russa de altos e baixos.

De início, tem-se a anuviada e matinal "The Three Sunrises"; dos primórdios, ostenta coros à la "Yes" (das degenerações publicitárias). Altamente louvável foi o comparecimento da balançada, sussurada e vigorosa "Spanish Eyes"; na terceira audição você já está entoando: "Uh-ê, he, hei/ Baby hang on". "Sweetest Thing" é uma composição semi-infantil dedicada à senhora Vox; grandes são as chances de que emplaque em 1999. "Love Comes Trumbling" remete a David Bowie, Brian Ferry, Roxy Music; elegância despretensiosa para embalar comemorações esnobes. "Bas Trap" é uma representante da faceta mística, oriental, new age da banda; não à toa tem a benção da dupla Eno e Lanois.

A vibrante "Dancing Barefoot" inaugura a estética "U2 Anos Noventa" nos B-sides; trilha sonora de "Três Formas de Amar" (1994), destoa dos antigos padrões — por ser dançante e moderna demais. "Everlasting Love", que principia com violões evocando a cavalaria, é aquele velho hit dos Anos Setenta — reenergizado, reabilitado e cantado pelos roqueiros que desconhecem suas origens absolutamente Dance; sinaliza, aliás, o subseqüênte flerte do grupo com o gênero. "Unchained Melody" é a pieguice em estado bruto; indelevelmente ligada ao xaroposo "Ghost" (1990), teve seus momentos de glória nas mãos de Elvis Presley.

"Walk to the Water" é assaz experimental; Bono Vox, num quase-rap, cita "poemas lisérgicos", exercitando sua fixação por Jim Morrison. "Luminous Times" traz o tom de contatos imediatos do terceiro grau, em que predominam balbucios, mensagens cifradas, frases entrecortadas — e tambores do espaço sideral.

A alegria franca retorna com "Hallelujah Here She Comes"; quase-country, quase-apache; tão otimista quanto um dia de sol. "Silver and Gold" vem em resposta àqueles que pragejaram contra a sua não-inclusão nos A-sides; poderosa, enlouquecida, deve ser tocada quando do enfrentamento de uma situação atemorizante. ("Endless Deep" poderia se chamar "Endless Song"; tentativa musical frustada exceto pelo bass solo de Adam Clayton.) "A Room at the Heartbreak Hotel" entra com orgão de igreja, evolui para uma levada tribal e desemboca em vocais e guitarra nunca dantes tão rasgados; é a sutileza wild dos moços; digníssima homenagem ao rei do Rock.

"Trash, Tramboline and the Party Girl" — pequena incursão folk dos tempos ginasiais de "Boy". Não exatamente um gran finale. (Meio desafinado, aliás.)

Lado Ruim

Ausências sentidas: "Like a Song", "Drowning Man", "Two Hearts Beat as One", "40", "In God’s Country", "Gloria", "A Sort of Homecoming", "Indian Summer Sky", "Red Hill Mining Town", "Trip Through Your Wires", "One Tree Hill", dentre outras.

Lado Bom

Apesar do marketing obsessivo e da parafernália consumista, o U2 continua produzindo álbuns frutíferos e se renovando a cada dois, três ou quatro anos. Incontestável, por exemplo, a qualidade do camaleônico e ousado "Achtung Baby" (1991); irresistível a doçura e a leveza do quase-aborto "Zooropa" (1993); admirável a força e a atualidade de "Pop" (1997). Inesquecíveis as diferentes encarnações de Bono, The Edge, Adam e Larry na mídia e no palco.

Ainda que tenha se globalizado nas intenções, ainda que tenha se privatizado na defesa de suas causas, o U2 permanece fiel à sua essência criativa. Abandonou a militância, abandonou a seriedade. Abraçou a Pop-art, abraçou a pluralidade.

A parada de agora, juntamente com a reavalição que resultou no "The Best of" e nos "B-sides", aponta para um novo ponto de inflexão. (No que será que eles vão se transformar desta vez?)

Haja o que houver, come rain or come shine, o U2 promete novas aventuras pra quem ficar ao seu lado.

Teje lá!

J. D. Borges