Kubrick e os Olhos que a terra há de estar comendo

Ultraviolência. Terror psicológico. Injustiça. Impotência. Eis alguns dos ingredientes do grão-mestre Kubrick. Sempre atento à opressão, às bestialidades, ao nonsense que o Homem cria para si mesmo, para seus semelhantes, tentando salvar-se, tentando salvar os outros, tentando elevar-se para além de sua condição animal, tentando impor uma certa civilidade, tentando disciplinar. Tentando em vão.

Não poderia ser diferente em Eyes Wide Shut. Filme muito comentado, mas pouco compreendido.

Superficialmente, mostra um casal em momentos íntimos, encena uma orgia pujante, sugere um mistério indecifrado, faz do sonho uma realidade e da realidade um sonho mortificante. No fundo, porém, amplia e esmiúça as confissões entre marido e mulher, o fio cortante da sinceridade e das fantasias, as masmorras pelas quais se conduz o macho torturado e desnorteado pelo ciúme.

Ciúme. Não importando se a traição se deu de fato, não importando se a família e a integridade do lar foram preservadas, não importando se a morte assoma à porta, não importando os riscos de uma noite surreal. Não importando mais nada. Sua fêmea havia desejado outro (que não ele), e estava disposta a trocá-lo, a abandoná-lo, a olvidá-lo — por uma única noite de entrega sexual.

Não há homem, sobre a Terra, que amando de verdade, como nunca, sua mulher, não há homem que amorteça impávido um golpe de tamanha intensidade. Conservador ou não, liberal ou não, ouvir isso, seja pela primeira, segunda ou décima vez, com tamanha riqueza de detalhes, é algo brutal, devastador. E ai daquele que negar, pois: ou estará negando a sua masculinidade; ou estará negando o seu amor.

Eis a atualidade da história de Arthur Schnitzler (em que se baseia a fita). Ontem, hoje e sempre, em qualquer século, em qualquer parte, essa história poderá ser contada, porque seu tema central é universal e recorrente: o macho sentindo-se ameaçado pelos seus rivais, atuais, futuros ou pretéritos; o macho fragilizado, miniaturizado diante do que não pode controlar, mudar, reverter (em sua fêmea).

Assim, todo o resto, em Eyes Wide Shut, não passa de alegoria, de representação, de complemento — de suporte a esse grande tema. Talvez Kubrick tenha realçado demais a questão da sociedade secreta, das perseguições e dos desaparecimentos. Talvez estejamos por demais condicionados a nos deixar embalar por qualquer trama, por qualquer elemento suspeito. A tal ponto, que o drama inicial se perde, ou deixa de interessar, à medida que o suspense cresce e as coincidências macabras vão tirando o fôlego do doutor William Harford.

Sua descida às catacumbas e aos infernos, porém, deve ser tomada como metáfora, como símbolo da sua desolação espiritual, da sua “derrota” como marido, do seu desatino. É a encenação genial do momento em que o homem redescobre sua mulher. Sua mulher como gente, como ser humano, com imperfeição, cheia de fomes e de vontades insuspeitadas, plena em pecados, em passado e em paixões torrenciais. É o momento em que o homem, numa relação, perde a sua virgindade: não a virgindade física ou biológica, mas sim a virgindade moral, psíquica.

Livre do romantismo ofuscante, da aura angelical, vai, enfim, entender aquela que elegeu como companheira para toda a vida. Vai aceitar-lhe as razões e os motivos (mesmo que eles não existam); vai estender, como nunca antes, a sua percepção do universo feminino; vai ligar-se irremediavelmente ao sexo oposto. Vai formar-se e fundir-se na união conjugal: o marido na mulher e a mulher no marido, por los siglos de los siglos. Amém. Está dito.

Mas isso só acontece uma vez na vida.

Logo, não pode ser uma coisa fácil, não pode ser uma experiência suave, não tem como atravessar a rotina de um casal sem deixar escombros, mortos e feridos. A descoberta das trevas do ser amado é um processo, longo e dilacerante, que se expande, que não se contém em si próprio, que não contém a si mesmo, que toma nossos olhos, ouvidos, pensamentos e atividades. Que nos sacrifica e nos redime.

Quando for a hora.

Enquanto isso, parceiros de longa data, identificam-se com Kidman e Cruise, em seus diálogos, em suas revelações, em suas aflições e em seus delírios. Enquanto isso, pára-quedistas dos primeiros beijos e dos primeiros abraços, perguntam-se como viver a dois pode ser tão complicado. Enquanto isso, os privados pela sorte, pela idade ou pela maturidade, enganam-se em mais um policial sem resposta, em mais uma charada secundária.

Enquanto isso, o piano de György Ligeti toca.

Desse encontro, você não escapa.

J. D. Borges