Na panela de pressão de Lenine

Aqueles que decidem expressar-se artisticamente têm à sua frente dois caminhos possíveis e unívocos: ou compõem a partir de estilos estabelecidos e admirados, ecoando a estética e as idéias de antigos mestres; ou lançam-se rumo ao desconhecido sem qualquer referência muito forte ou preponderante, como que ignorando tudo o que foi feito antes.

O primeiro time pauta a sua originalidade pela mistura, pela multiplicidade, não se preocupando com as mudanças de estilo de um trabalho para o outro, nem com a constante ameaça de perda da identidade. Deslocam-se ao sabor dos opostos, fazendo uma ponte, camaleonicamente, entre dois pontos sem aparente conexão. Em meio a glórias e acusações de pastiche, sobrevivem da filosofia de Assis Chateaubriand: “A coerência é a lógica dos idiotas.”

Assim é Carlinhos Brown, o omelete man.

Os do segundo time, porém, desenvolvem sua essência. Aprimoram o que tem de próprio e de verdadeiro, esnobando, se quiserem, as referências obrigatórias e os pré-requisitos considerados básicos pela “escolástica”. Partem do zero absoluto, tomando os sábios apenas como ocasionais acessórios — e não como modelos a seguir e a imitar. Constroem um edifício de consistência e coerência tão fortes que se não são unanimemente respeitados, é porque são ocasionalmente invejados. Seus opositores os chamam de primitivos e acusam-nos de ignorar tendências “descoladas” ou o passo impositivo de civilizações new-yorkers.

Assim é Lenine, e por isso canta: “Eu sou meu guia.”

Seu novo CD, composto “Na Pressão”, é uma aula de perseverança e de personalidade. Se demorou vinte anos para despontar do anonimato, conforme se lamenta muito, foi porque cultivou suas sementes — preservando-as dos modismos e das tentações do sucesso fácil e esterilizante. Sua presença é sentida em todo o álbum. Está lá por inteiro. Pulsa, deixa uma marca e conquista um espaço na sua estante de Música Brasileira.

É preciso refinar as sutilezas. Lenine não desfaz dos grandes cabeças do Samba e dos Ritmos Pernambucanos. Apenas não deixa que sua criação dependa deles. Nem tampouco das novidades ou do que surge. Dialoga, outrossim, com a Tradição e com as Vanguardas, servindo-se delas, tomando-as não como norte, mas sim como complemento. Deste modo, propõe fusões impensadas: programação eletrônica com Jackson do Pandeiro, Raimundos com viola de dez cordas, loops de drum’n’bass com Naná Vasconcelos, Banda de Pífanos de Caruaru com rap de Arnaldo Antunes, Dominguinhos com samplers, Marcos Suzano com tecno.

Sendo que sobre tudo isso, reina, impera. Orquestra todos esses talentos e potencialidades em função de sua voz: ora suave, ora alarmante; ora melosa, ora obrigatória. E do seu violão: às vezes seco, às vezes sedoso; às vezes marcado, às vezes amplo. Tem o canto e o instrumental tão amadurecidos que lança um novo paradigma — ato contínuo ao seu aparecimento. E se a MPB andava tão insossa e reincidente, agora vemos, não era por falta de talentos. Como las brujas: que os há, os há.

Não bastassem as qualidades estritamente musicais de Lenine, encontramos também, em cada peça, um grande letrista: “Meu lá, minha lã / Minha paga, minha pagã / Meu velar, minha avelã / Amor em Roma, aroma de romã / O sal e o são / O que é certo, o que é sertão / Meu Tao, e meu tão... / Nau de Nassau, minha nação” — no jogo de palavras de “Meu Amanhã (Intuindootil)”. Também na sensibilidade de “Paciência”: — “Mesmo quando tudo pede / Um pouco mais de calma / Até quando o corpo pede / Um pouco mais de alma / A vida não pára”. Ou ainda na sonoridade elaborada de “Jack Soul Brasileiro”: — “Eu canto pro rei da embolada, / Na língua da percussão / A dança, a muganga, o dengo / A ginga do mamulengo, / O charme dessa nação”.

Charme mesmo. É o que se respira quando se folheia e se acompanha cada música, com a garganta e com os ouvidos. O encarte associa uma imagem forte a cada tema. O impulso, a mensagem e o balanço nos convidam a acompanhar decorando cada passagem. “Na Pressão” é o disco que, no ano da graça de 1999, veio para ser tocado do começo ao fim, de trás pra adiante, indefinidamente.

Que Lenine alcance a posição que lhe é devida. Mas que se mantenha íntegro, fiel às suas origens, autêntico nos seus trabalhos.

Que a pressão na ribalta não o estrague, apenas o melhore, como no título do álbum.

J. D. Borges