O Inferno segundo Jean-Paul Woody Allen

O Universo existe enquanto você o percebe.

Problema eterno da Filosofia, a existência do mundo exterior já foi provada e comprovada por muitos dos grandes pensadores do Ocidente. Nunca definitivamente. Saber se o que vemos, ouvimos, degustamos, farejamos, palpamos e sentimos é real ou imaginário; saber se as pessoas que nos rodeiam são realmente aquilo que pensamos delas, ou apenas um punhado de impressões equivocadas; saber se a nossa casa, o nosso país, a nossa galáxia realmente se compõem daquilo que podemos perceber, ou se restringimos as formas, os elementos, as relações e os impactos aos nossos sentidos e à nossa limitada capacidade de compreensão — eis aí uma tarefa para o Hércules dos Doze Trabalhos.

Nesse cenário, o que seria a história de vida de cada um de nós senão o acúmulo de objetos que transcendem o material, de lugares que transcendem o geográfico, de indivíduos que transcendem o físico, e de sensações que transcendem o rés da realidade? Cada um cria e recria suas trevas, suas delícias e seus mundos de acordo com aquilo que lhe parece mais favorável, ou, numa instância interpessoal, de acordo com aquilo que se lhe afigura mais benéfico para a família, para a empresa, para a comunidade.

No limite, conduzimos nosso dia-a-dia com base em fantasias interpretativas do Mundo Real (se é que ele existe), acreditando em ideais ou princípios superiores, os quais trariam sentido aos desencontrados e triviais episódios que supostamente fazem da nossa biografia algo especial.

Seríamos, portanto, um bando de seres isolados, tentando viver uma falsa ilusão de sociedade. Simplificando ao máximo a personalidade dos nossos semelhantes, alimentaríamos o sonho de uma pseudo-igualdade, de uma pseudo-liberdade e de uma pseudo-fraternidade. Como se as nossas diferenças fossem irrelevantes, irrisórias, ínfimas — ao ponto de nos permitir compor um plano uniforme de felicidade para todo e qualquer cidadão; regulando inclusive a conduta daqueles que nos parecessem desajustados, desaparelhados, despreparados para esse pacote de bem-aventurança onírica.

Assim também para Woody Allen e para o protagonista de "Desconstruindo Harry" (filme novo nas telas daqui). Segundo pregam, Allen e sua Criação, o Inferno consistiria no contato com o outro, com o próximo, com a máxima de Sartre. Les autres — na sua relutância em se amoldar aos papéis que lhes julgamos mais apropriados — atravancariam o nosso projeto pessoal de felicidade.

Na fabular história, um escritor mediano passa pelas maiores agruras por jamais se adequar a nenhuma de suas quatro esposas, por nunca ter compactuado com as crenças de sua família judaica, por ter trocado três vezes de analista — por ter, enfim, conduzido suas relações pelo fio da rotatividade e da inconstância (seja na convivência escassa com o filho; seja na dependência de prostitutas; seja nos encontros com amigos que só o procuram quando à beira da morte, ou quando prestes a roubar-lhe a bem-amada).

Impossibilitado de dominar quem está a sua volta e as situações (a eles) correlatas, Harry reescreve sua história, transformando-a em ficção, em livro, em best-seller. Pois apenas no reino da Arte, da invenção, consegue entender, manipular e vencer os fantasmas que o atormentam na vida real.

Acaba, claro, pagando um alto preço por suas mal-disfarçadas recriações. Acaba, no fim, perseguido pelos conselhos, pelas ameaças, quando não pelas suas próprias personagens (reais ou imaginárias).

Assim, faz-se joguete de suas iniciativas desastradas, refém de suas abordagens desajeitadas, vítima de suas ações inconseqüentes — que terminam por conduzi-lo ao cárcere e, como se não bastasse, ao temível Inferno (cheio de religiosos, advogados, políticos e críticos literários).

No fundo, trata-se de um clássico Woody Allen. Mais criativo e mais autobiográfico do que nunca, recheado com seqüências de piadas ininterruptas (de engasgar a platéia) e com mini-roteiros brilhantes que, se desenvolvidos, dariam filmes muito mais interessantes do que os que temos visto por aí ultimamente.

Não resolve, obviamente, a questão da verossimilhança — da distinção entre "o que é" e "o que parece ser". Talvez porque, como Machado, tenha percebido (e tenha provado) que isso, na verdade, não importa. Saber se Capitu traiu ou não, chegar à versão última e irrefutável dos fatos é coisa tão tola e tão pouco proveitosa, que só deve interessar mesmo aos idiotas da objetividade.

J. D. Borges