O princípio de Inutilia Truncat aplicado ao affair Clinton

É do homem mitificar e desumanizar suas crenças e seus ídolos.

Desde os primórdios que o homo sapiens ergue, para si, totens incríveis; cultua deuses e divindades que, de tão perfeitas e impolutas, jamais poderiam habitar o que se chama de plano físico.

Cria também mitos, ritos e paradigmas, improváveis e inatingíveis — como que para esvair-se de toda a miséria e de toda pequeneza que é ser apenas mais uma — dentre as infinitas criaturas que nesta Terra habitam.

Não tem sido diferente no moderno, científico e desencantado século XX. Neste nosso tempo, também se construíram palácios e também se destruíram cidades em nome de religiões e de delírios coletivos. Também se elaboraram códigos e também se impuseram preceitos os mais alucinatórios e os mais incabíveis.

Muitos dos líderes políticos, intelectuais e culturais, aproveitando-se dessa faceta da população submissa, criaram para si uma aura etérea, sublime, divina — de modo a garantir a subserviência e a adoração antes dedicadas apenas aos semideuses da Grécia e da Roma antigas.

Acontece que, na intimidade, todos sabemos: essa invulnerabilidade, essa magnanimidade não subsistem.

Então ocorre da celestial princesa da casa real da Inglaterra vir a falecer num acidente de carro ridículo, como centenas de outros mortais todos os dias, — e o Mundo se põe desnorteado: sai dos eixos; sem crer jamais no fato banal, trivial, desprovido de qualquer transcendência ou poesia.

Então ocorre do presidente mais poderoso do globo assumir-se marido infiel e cidadão de ardilosa língua — para o Mundo todo desabar em discussões e debates os mais fervorosos em torno da sexualidade e da privacidade desse tal de Bill Clinton.

E formulam-se hipóteses.

A Newsweek, numa analogia a Dr. Jekyll e Mr. Hyde (evocando, como Veja, o nosso Motoboy Francisco), fala em coexistência de "lado bom" e "lado ruim" em William Jefferson Clinton. A Isto É aposta em feminismo e em Marta Suplicy — anunciando, graças à firmeza inquebrantável de Hillary, uma futura candidata à presidência dos Estados Unidos. Época, mais contida, prefere analisar o "antes" e o "depois" — dos dizeres de Bill acerca do Vietnã, da maconha e de Monica Lewinsky. Manchete, mais sensacionalista, publica declarações quentíssimas da Primeira Dama americana — discorrendo sobre a letal libido do esposo e sobre a sua vontade fidedigna de estrangular uma certa "sujeitinha".

Ninguém aceita que seja só isso: uma aventura amorosa de um presidente que vive, grosso modo, de cerimoniais e de lançar mísseis (como atesta Gore Vidal em seu mais recente artigo).

É preciso aprender que os Estados Unidos da América se fez de entidades, de instituições; de organização e de planejamento (em torno de objetivos bem definidos). E não somente de personalidades, de super-heróis impossíveis — como se tenciona fazer aqui no Brasil.

Ainda que a história norte-americana seja povoada de personagens notáveis, recorrentes, inesquecíveis, a lição que deve ficar é a de um Povo que fez, pela sua pátria, muito mais do que seus ídolos sozinhos.

Assim, devemos discutir aqui temas mais pertinentes a nós brasileiros, como (re)eleição, educação, privatização, justiça; desemprego, cultura, segurança, economia e política. Deixemos de lado as fofocas de alcova e as disputas no seio da família Clinton — que só interessam aos cidadãos da nação diretamente envolvida.

Concentremo-nos, para variar, no nosso umbigo.

J. D. Borges