Valéria Piassa Polizzi e a Geração dos Anos Noventa

No afã de nos contar uma história pessoal rica e singular, a autora de "Depois Daquela Viagem" termina por nos brindar com um painel assaz representativo dos anseios, frustrações e dúvidas da geração dos Anos Noventa.

Fustigada pelo fantasma da morte, conseqüência até pouco tempo considerada plausível da Síndrome da Deficiência Imunológica Adquirida, a escritora Valéria Piassa Polizzi nos revela uma geração Carpe Diem — que não traça planos a longo prazo, que não se encontra em meio a carreiras e vestibulares, que renega a família de pais trabalhadores e separados, que questiona as formas de relacionamento convencionais, que tem com as drogas uma relação de indiferença e de proximidade, que não vive de doutrinas e ideais, e que faz da escrita chave para o entendimento de sua personalidade.

Quando Valéria nos relata sobre sua evidente incapacidade de estabelecer metas para o futuro, retrata, quase sem querer, a própria juventude dos Anos Noventa — que parece não viver de especulações, que não trabalha por objetivos num futuro distante; que, criada em meio às desilusões de tempos passados, tem medo de plantar e não colher; que vivendo a intensidade do presente, parte para noitadas de meio da semana e para carnavais fora de época.

A autora, quando viaja para os Estados Unidos em busca de si mesma, em busca de uma definição, de uma carreira a ser trilhada, não vai só. Leva consigo muitos dos jovens desse Brasil globalizadamente varonil que não mais oferece quaisquer garantias profissionais, pautadas em diplomas seculares. Leva consigo os milhares de compatriotas que não sabem o que estudar, que esperam anos para prestar vestibular e que, desencantados e desguarnecidos, precisam de uma segunda (ou terceira) faculdade para se completar.

Valéria, quando diz adeus à família e embarca solitária rumo ao Tio Sam, traz à luz o desintegrado modelo de família de pais ocupados, distantes e aparvalhados. Assim como os demais filhos das gerações libertárias dos Sessenta e Setenta, questiona, ainda que de forma velada, o preço a pagar em termos de ausência, de auto-suficiência e de auto-estima.

Quando condena justificadamente seu primeiro relacionamento "machista-autoritário", temperado com atos de franca violência, Valéria aponta para um caminho de menos opressão, de menos cobranças e de menos responsabilidades. Sugere talvez um intermezzo entre a volubilidade do "ficar" e a obrigatoriedade dos namoros qüinqüenais — algo que a juventude de agora tenciona definir e adotar.

Através de uma colega de quarto jamaicana, Valéria nos apresenta a participação das drogas em seu universo: uma possibilidade, não uma realidade; uma presença, não uma desavença; um melindroso ritual, não uma bola de cristal. E assim é a droga encarada pela Geração dos Noventa: com maturidade, com olhos críticos e com conhecimento de causa; não com inocência cega, mesclada a irracional temeridade.

Consoante à extinção dos modelos ideológicos-políticos-artísticos, Valéria, bem como seus companheiros de "Viagem", não se apóia em dogmas partidários, em estéticas nacionalistas, em movimentos e ondas universitários. Escolas, estéticas e talentos de hoje despontam titubeantes e individuais, conquistando platéias — menos alienáveis e mais setoriais.

Antecipando-se ao advento da Internet, que se desdobrou em chats e E-mails, a autora fez da escrita meio e mensagem, bandeira e estampa. Para compreender, para divulgar, para explicar, para emocionar, Valéria, como os que atualmente se conhecem, se descobrem, e se amam por escrito (através da World Wide Web), elegeu como instrumento-mor a palavra. Isto mesmo a palavra (!) — algo tão démodé neste fim-de-milênio apinhado de imagens...

Eis o modo como esta pequena-grande obra ao leitor se manifesta. Fosse apenas pela vastidão de significados, a incursão na "Viagem" já teria valido à pena. No entanto, há mais. Há uma autora tão encantadora, tão cativante e tão modesta. Há a Valéria que, com seu sorriso doce e com o seu semblante cheio de coragem, veio abrir o livro da vida — a fim de, tão jovem, nos ensinar coisas do arco-da-velha.

Valeu Valéria! Valeu pela carona!

J. D. Borges