Pelo sangue que jorra nos Bálcãs

Antônio Callado afirmava que Guimarães Rosa tinha, dentro de si, todas as guerras. Guerras as quais introjectou e exorcizou plenamente em sua obra máxima, "Grande Sertão: Veredas". Quem dera nossos mandatários globais pudessem, a exemplo do célebre escritor, esconjurar suas tendências (auto) destrutivas. Pois, pelo que se sabe, Rosa não sofreu de achaques belicistas — bem à moda dos ditadores genocidas deste século; nem protagonizou arroubos de intervencionismo supranacional — típicos dos dirigentes das superpotências de agora, que vivem, dentre outras coisas, da pirotecnia econômico-financeira.

Numa guerra que, como as demais, prima pela violência insensata e pela mortandade irremediável, nenhum dos lados, em conflito, tem razão. A questão, logo, se resume a quem, dentre os culpáveis, comete menos pecados.

Em se tratando da atual ofensiva, OTAN (Organização dos países do Tratado do Atlântico Norte) versus Sérvia, ou melhor: Bill Clinton versus Slobodan Milosevic, a balança oscila, oscila e não parece pender para nenhum dos pratos.

Sr. Milosevic

Pelo advento da chamada "limpeza étnica", este líder iugoslavo, vem promovendo a expulsão a bala e a foice dos ímpios albaneses que infestam a região de Kosovo. Região considerada sagrada pelos sérvios — que a exigem para si desde o século XIV, quando obtiveram vitória moral (leia-se derrota patente) sobre o império turco-otomano.

Possuído de crescente megalomania, o novo açougueiro dos Bálcãs, o mais recente inimigo público número um do Tio Sam, resolveu enfrentar o armamento e o exército dos autodenominados "Aliados" (leia-se os dezenove países que integram a OTAN). A princípio, recusando-se a assinar o acordo de Rambouillet (na França) — que prevê, entre seus desdobramentos, a autonomia da província de Kosovo, garantida pelo braço forte de 28.000 pacificadores não-iugoslavos.

Tendo considerado a supracitada proposta uma afronta à soberania de seu país, Milosevic não só ignorou solenemente as diretivas dos mantenedores da ordem moral e social do planeta, como tratou de alimentar iniciativas absolutamente contrárias às que lhe foram aconselhadas. Ou seja, alegando indignação contra as provocações do "Exército de Libertação de Kosovo" (ELK), decidiu por ceifar os mencionados albaneses: ateando fogo às suas casas; confiscando seus bens; estuprando suas mulheres; degolando suas crianças; destruindo seus registros de cidadãos, de proprietários e de seres humanos — suprimindo, enfim, vidas e desabrigando uma massa de refugiados que já soma mais de um milhão de almas.

Depois de exterminar quase a totalidade dos milicianos e das bases do ELK, propôs, mui habilmente, um Cessar Fogo. Cessar Fogo que foi sumariamente desconsiderado pelos "Aliados".

A OTAN, em mais uma de suas trapalhadas homéricas, mordeu a isca. Como ela não pretende suspender os bombardeios, Sr. Milosevic vai, doravante, acusar seus opositores de intolerância, abjeção e inclemência — contra um país em frangalhos.

Sr. Clinton

Pela tática do fogo contra fogo, o presidente dos Estados Unidos, auxiliado por seus estrategistas pós-doutrina Powell, resolveu entrar na dança com a última palavra em artefatos militares (exatamente como no comercial de trinta segundos que quis evitar): bombardeiros B-52 diretamente da Inglaterra, caças F-15 e F-16 diretamente da Itália, bombardeiros B-2 diretamente do Missouri, mísseis e submarinos diretamente do mar Adriático, satélites GPS diretamente do espaço sideral e caças F-117 invisíveis (porém não invulneráveis) também da Itália.

Como no fiasco dos Scuds, no Iraque, em 1991, os U.S. sofreram baixas: um F-117 Nighthawks (no valor de 45 milhões de dólares) e três combatentes capturados, espancados e televisionados worldwide. Sem falar nos costumeiros erros de cálculo, que vitimaram, logicamente, civis desavisados (do outro lado).

Segundo estimativas do nosso confrade Moacir Werneck de Castro, o governo americano pretende sacar, do bolso do contribuinte, 10 bilhões de dólares — para pôr ordem na ex-Iugoslávia. Uma quantia módica, se considerarmos que foram despendidos 60 bilhões de dólares na tentativa de conter Saddam Hussein e sua corja.

Isso é que é queimar reservas; o resto é papo furado.

O american people, entre eufórico e sobressaltado, torce. Como se pedisse por um inimigo mau-caráter, obtém, de seus semanários, descrições minuciosas da personalidade atormentada de Slobodan Milosevic: filho de um pai que deu um tiro na cabeça e de uma mãe que se enforcou no próprio quarto; estudante desinteressado por esportes e atividades extra-classe; destinado a não passar de um mero balconista de loja; no partido comunista, era chamado de "Pequeno Lenin", dada a sua rigidez draconiana para com subordinados; homem de uma mulher só, tem fama de teimoso e misantropo.

Tem mais é que ser subjugado.

Intriga, no entanto, a solidariedade repentina dos E.U.A. para com uma aleatória pátria de minorias desenganadas. Como indagou Kissinger, por quê os Kosovares e não os desvalidos da África Oriental, de Sri Lanka, de Kashmir ou do Afeganistão?

Srs. Patrocinadores

E este é só o primeiro capítulo: o dos "Ataques Aéreos". Vem aí o capítulo dos "Ataques por Terra", com direito a helicópteros Apache e hollywoodianas invasões de tropas. Em que pesem as décadas de Cold War, espera-se que a referida artilharia não entre em choque com as forças apaziguadoras que promete enviar a Rússia.

Aliás, esse é o medo de muitos dos nossos analistas. Temem que o encontro de americanos e russos, ainda que em clima de "deixa disso", redunde na mais que anunciada Terceira Guerra Mundial. Isso mesmo. Como se valesse a pena brigar por uma Sérvia em sucatas...

Se bem que a lógica cotidiana, nessas horas, falha; foge ao controle, extrapolando os limites do racional e do imaginável. A Civilização, então, retrocede à bestialidade do Homem das Cavernas — que, nesses momentos, assoma vigorosa; irredutível dentro de nós.

Portanto, em vez de ficar discutindo as amenidades da estação e as brasilidades insolúveis de cada dia, deveríamos dar mais atenção ao sangue que — hoje, ontem e amanhã — jorra nos Bálcãs.

J. D. Borges