"Ensaio Geral" de Gilberto Gil — um legado para sempre

Louvando o que bem merece; deixando o ruim de lado.

Finalmente. Foi lançado o baú de preciosidades do músico mais íntegro da geração pós-bossa-nova-universitária-tropicalista-contestatória-detida-exilada-antenada-repatriada-refeita-consagrada-pop-politizada-globalizada-canonizada-literária-multimídia. Está lançado, no espaço terrenal, "Ensaio Geral", o registro ineditamente digital do momento único, imprescindível do compositor mais honesto, mais autêntico, mais exemplar da chamada "MPB": Gilberto Passos Gil Moreira.

A dita louvação começa agora.

Começa pelos anos televisivos, de explosão nos festivais da canção da Record, em que o baiano, administrador de empresas, recém-chegado a São Paulo, com emprego garantido na Gessy Lever, abandona uma carreira de estabilidade e previsibilidade, para embarcar nesse mar revolto, nesse furacão comportamental, nessa dinamite criadora que foram os anos sessenta, sessenta-e-quatro, sessenta-e-oito, sessenta-e-alguns, sessenta-e-muitos — sessenta-em-geral, no Brasil e no Mundo.

Gilberto Gil (1967)

Explode, logo de cara, num elepê com produção de Dori Caymmi — trazendo na bagagem Elis Regina ("Lunik 9"), João Gilberto ("Ensaio Geral"), Caetano Veloso ("Beira-Mar"), Gal Costa ("Maria"), seresteiros e serenatistas misturados a Luiz Gonzaga ("A Rua"), sambistas-de-roda salpicados com luta-de-classes ("Roda"), cancioneiros floridos e carnavais de salão ("Rancho da Rosa Encarnada"), forrós sertanistas e revolucionários ("Viramundo"), Noel Rosa e Chico Buarque ("Mancada"), a Bahia ("Água de Meninos"), teologia, passividade, fanatismo e submissão ("Procissão"), além dele próprio, Gilberto Gil (em "Louvação"). Quer mais? Saboreie, então, as injustamente esquecidas e especialmente compiladas "Minha Senhora" e "A Moreninha". Nem os mais exigentes contestam, neste início, o show de voz e violão.

Gilberto Gil (1968)

Bomba. Bomba e adrenalina no elepê de sessenta-e-oito. Brasileiro até a capa (verde-amarelíssima), sagrando o poeta e confrade Torquato Neto: "O jornal de manhã chega cedo/ Mas não traz o que eu quero saber/ As notícias que leio conheço/ Já sabia antes mesmo de ler", "Eu, brasileiro, confesso/ Minha culpa, meu pecado/ Meu sonho desesperado/ Meu bem guardado segredo/ Minha aflição/... Eu, brasileiro, confesso/ Minha culpa, meu degredo/ Pão seco de cada dia/ Tropical Melancolia/ Negra Solidão".

Igualmente carregado de ritmos: frevo ("Frevo Rasgado"), rock ("Domingou"), baião ("Marginália II"), jovem-guarda ("Pega a Voga, Cabeludo"), quase-xote ("Domingo no Parque"). Ponderando sobre temas urbanos e sociais: "A herança, a segurança, a garantia/ Pra mulher, para a filhinha, pra família... A incerteza, a pobreza, a má sorte...", "E eu nesse táxi/ Que trânsito horrível, meu Deus... Estou tão cansado, mas disse que ia...". Sem contar as participações inesquecíveis dos já cultuados Mutantes: contidamente em "Domingou"; visivelmente na alegre e juvenil "Pega a Voga, Cabeludo"; suavemente na trinilopezca versão eletrificada de "Procissão".

Gilberto Gil (1969)

Mais guitarras e teclados na moderníssima e, ao mesmo tempo, humanista "Cérebro Eletrônico" — presente no costurado elepê de sessenta-e-nove. Entrada salutar e psicodélica do experimentalista Lanny — que deixaria suas marcas no também disco de despedida (ou o álbum branco) de Caê (vide "Lost in Paradise" e, mormente, "Objeto Não Identificado"). A negritude, em sua melhor forma, aqui se afirma por meio de "Volks-Volkswagen Blue". Eis então o samba da despedida, a canção do exílio, propositalmente enxertada de platéia e batucada, chegando a essa forma contente que se divulgou de "Aquele Abraço" (em verdade, um adeus assaz apaixonado e comovente).

O flower-power, o hippismo e a influência lisérgico-distorcida se manifestam na adaptação de "17 Légua e Meia", e em "A Voz do Vivo". Astronáutica, ufologia, vácuo, eco e futurologia, pela primeira vez, transbordando em "Vitrines", "Dois Mil e Um" e "Futurível". Ensaios lingüísticos, filosóficos, memorialistas em "Objeto Semi-Identificado" (evocando a fragmentação sonora de "Revolution 9", dos Beatles). Destaque final para a inclusão de "Queremos Guerra" — com o Veloso e o hoje Ben Jor (ontem apenas Ben) —, um protesto contra as arbitragens persecutórias do regime militar.

Copacabana Mon Amour (1970)

Dos British Years, a recém-redescoberta trilha sonora de um filme de Rogério Sganzerla, "Copacabana Mon Amour". Uma incursão na simplicidade e no despojamento dos primórdios, predominando voz-e-violão, ornados com sinuosa e entrosada flauta transversal, combinados com percussão afro-indígena. Em sua maioria, composições melódicas circulares, anunciando as antológicas jams contidas no álbum "Gil & Jorge", de setenta-e-cinco.

Quase totalmente instrumentais, as músicas carregam as primeiras incursões de Gilberto no idioma inglês, salvo referências raras a uma ou outra palavra do português (supostamente uma lembrança dolorosa). A coesão é tamanha que não há sentido em apontar trechos da obra em separado. (Atenção para a batida forte e o canto visceral que agora se mostram, mas que atingem seu ápice no elepê seguinte.)

Gilberto Gil (1971)

"Gilberto Gil", de setenta-e-um, é Gilberto Gil tomando contato e superando seus ídolos e contemporâneos daquele então (leia-se, mais explicitamente, Jimi Hendrix e Stevie Winwood). Principiando por "Nega", um blues-rock ritmado e contagiante como nunca antes houve. Passando por "Can't Find My Way Home", a gravação mais representativa do período; um épico vocal, desembocando em banzo enfurecido de arrepiar a alma. "The Three Mushrooms", fruto da fecunda contribuição com Jorge Mautner; resultado das experiências químicas e alimentares do momento.

Mais uma vez, volte-se o ouvido para as cordas e o cantar modulado, esganiçado, vibrante, vívido, em "Babylon". Segue-se a tradução impagável e, acreditem, melhorada de "Volkswagen Blues" (um aplauso para o baixista Chris Bonnet). "Mamma", menção saudosa a Dona Claudina.

E não adianta; deste disco, nada escapa: "One O'Clock Last Morning, 20th April 1970" é o delicioso diálogo repetido, múltiplo, reverberado; cronismo de um extraditado "tão triste". Energia nas veias, alento, ânimo, é o que traz "Crazy Pop Rock". No bônus, um Gil melífluo, ao vivo, com "Up From the Skies" (não à toa retomada durante as apresentações do "Tropicália 2"), fora uma inspirada e bem-humorada recriação de "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band".

Expresso 2222 (1972)

O retorno à pátria amada pode ser caracterizado pela volta às toadas regionalistas híbridas (xote em "O Canto da Ema", samba-rock em "Chiclete com Banana", balada-litorânea em "Ele e Eu" e forró em "Sai do Sereno"), no disco "Expresso 2222", de setenta-e-dois. Outra referência constante são as intermináveis meditações, reflexões, contemplações — conseqüência inevitável do degredo. Daí surge, por exemplo, esse hino contagiante que é "Back in Bahia": "Naquela ausência/ De calor, de cor, de sal, de Sol, de coração pra sentir/ Tanta saudade/ Preservada num velho baú de prata de dentro de mim/... Digo num baú de prata porque prata é a luz do luar/ Do luar que tanta falta me fazia junto com o mar/ Mar da Bahia/ Cujo verde vez em quando me fazia bem relembrar/ Tão diferente/ Do verde também tão lindo dos gramados campos de lá/ Ilha do Norte/ Onde não sei se por sorte ou por castigo dei de parar/ Por algum tempo/ Que afinal passou depressa, como tudo tem de passar/ Hoje eu me sinto/ Como se ter ido fosse necessário para voltar/ Tanto mais vivo/ De vida mais vívida, dividida pra lá e pra cá."

Também, claro, as hoje clássicas "Expresso 2222", "O Sonho Acabou" (uma resposta ao the dream is over, de John Lennon) e "Oriente" (mergulho nas culturas do além-mar). Na seção tesouros resgatados, uma irretocável interpretação de "Cada Macaco no Seu Galho", dispensando quaisquer regravações futuras... E, obviamente, as carnavalescas e, nesse ponto, competentíssimas "Vamos Passear no Astral" e "Está na Cara, Está na Cura", com influência pronunciada de Moraes Moreira.

Cidade do Salvador (1974)

"Cidade do Salvador", de setenta-e-quatro, tem, depois de vinte-e-cinco anos, sua primeira edição dupla completa, no mercado. Um ajuntamento de sucessos variados que se espraiariam em outros trabalhos, na boca de outros interpretes, em remakes e em vivências de palco. Acompanhando de banda afinadíssima, Gilberto está aí em um de seus maiores arroubos de criatividade artística.

Na porta de entrada, a participação luminosa do acordeon de Domiguinhos, em "Meio de Campo" (uma elegia à imperfeição e, por que não dizer, ao futebol) e na impecável e irresistível "Eu Só Quero um Xodó" (aliás de autoria do próprio). "Edyth Cooper" e "Umeboshi", acentuando a inclinação pop; sugerindo o que viria a ser a posterior fase "Realce". "Tradição" — da mesma forma enxuta que viria a aparecer na abordagem de "Caetano Veloso", vinte anos mais tarde. "Minha Nega na Janela", gostosa levada; despretensiosa história de um incidente quase banal. "Ó Maria", aparentada de "Eu Vim da Bahia". "A Última Valsa", primeira, última, única, deveras bela, valsa de Gil. Enfim, a "Rainha do Mar", embalada alusão, à altura de seu criador, Dorival Caymmi.

Na segunda parte, ainda resquícios de transcendência e amplitude labiríntica, na faixa título. De novo, para a redenção do público, a excelência dançante de "Imbalança", do infinito Gonzagão; um dos picos do disco. "Duplo Sentido", o bolero de Roberto Carlos que não o foi. "Eu Preciso Aprender a Só Ser", uma das grandes realizações do mestre Gilberto Gil: "Sabe, gente/ É tanta coisa pra gente saber/ O que cantar, como andar, onde ir/ O que dizer, o que calar, o que querer/... Sabe, gente/ É tanta coisa que eu fico sem jeito/ Sou eu sozinho e esse nó no peito/ Já desfeito em lágrimas/ Que eu luto pra esconder." Que harmonizador, que cantor, que instrumentista, que letrista magistral...

Ainda nesse embalo, a deliciosíssima "Maracatu Atômico", um mambo, um remelexo, uma ciranda, uma caminhada, uma condução, uma ambiência, um clima, um orgasmo, uma delicadeza, uma vertigem, uma realeza, uma natureza, uma loquacidade, uma viagem, uma coragem, uma entonação, uma confusão, uma proteção, uma verdade, um país.

(Como se não bastasse, o fechamento se dá com "Todo Dia é Dia D" e "Esses Moços, Pobres Moços", de Lupicínio Rodrigues.)

Daí em Diante

Resta, todavia, muito, muito o que falar sobre "Ensaio Geral", essa caixa, essa arca de belezas e bençãos. Há, apenas para citar, os elepês-concerto, "O Viramundo" e "Gilberto Gil Ao Vivo"; há também a coleção reunida de raridades, "Satisfação" (que merece, sozinha, um ensaio particular, dada a singularidade e a amplitude de gêneros que abarca). E há, por fim, "Que Besteira" (uma mistura de "Rouxinol" com improviso na melhor tradição repentista).

E falta. E falta muito para que se possa, minimamente, abranger esse poço sem fundo, esse jorro de petróleo, esse panorama de musicalidade infindável que é a produção generosa e qualitativamente invejável de Gilberto Passos Gil Moreira.

Agradecemos, penhorados, ao produtor Marcelo Froés. Agradecemos, penhorados, ao imenso Gilberto Gil.

J. D. Borges