A marca da ansiedade ou Conhece-te a ti mesmo

As exaustivas tentativas de definir um sentimento-símbolo, para o fim de noventa e nove, começo de dois mil, denotam, no fundo e na superfície, a marca indelével e mais procurada desta entrada e desta saída de século, milênio ou seja lá o que for: a marca da ansiedade.

A ansiedade seria, na verdade e de fato, o sentimento que hoje se tem do mundo e que hoje o mundo tem de si mesmo. A ansiedade de querer abarcar o todo, com teorias gerais, com filosofias permanentes, com conclusões eternas. A ansiedade que advém das infinitas possibilidades, das mais impensáveis combinações, dos mais gloriosos caminhos, das portas sempre fechadas e das portas sempre abertas. Ansiedade pela felicidade que não se sente chegar, ansiedade pela perfeição que nunca se alcança, ansiedade pelas conquistas que nunca jamais bastam. Ansiedade por querer viver “tudo” e, ao mesmo tempo, sentir-se vivendo o mais insípido, absoluto e vexatório “nada”.

O afã de querer ter lido todos os livros. O afã de querer ter ouvido todos os discos. O afã de querer ter visto todos os filmes. O afã de querer ter cruzado todos os sete mares, todos os cinco continentes, todos os céus e todos os sóis de toda parte, todos os brilhos e toda a escuridão de todos os astros e estrelas, todas as faces e todas as fases de todas as luas existentes. O afã de querer ter nascido e morrido nos trezentos e sessenta e cinco dias do ano, nas mil e uma noites, nas quatro estações e nos infindáveis ciclos da mãe natureza. Nos mitos, na mitologia, nos contos de fada, nas histórias, nas sagas e nas lendas. O afã de querer ter perecido e reencarnado nas gerações e gerações dos séculos e séculos dos milênios e milênios de uma humanidade inteira.

A época presente olha para o desfiladeiro de épocas passadas e, por não ter cara, por não ter vontades, por não ter bandeiras, por não ter ponto de partida ou de chegada, se atira e se vende à falta de identidade, à falta de propósito, à falta de porquês e à falta de um lugar na História.

Num segundo se ultrapassa e noutro segundo já é novamente ultrapassada. Por um instante é ápice, apogeu, auge, por outro é decadência, indecência e desastre. Nunca foi tão rica e majestosa, nunca abrigou tanta miséria e nunca desceu a patamares tão baixos de dignidade. Nunca se soube tão ciente e tão bem servida de conhecimento, cultura e inteligência, nunca se viu tão ignorante, tão analfabeta, tão medíocre e tão pouco original em suas belezas.

Como uma bússola desregulada entre pólos múltiplos e desatinados, ora atira para todos os lados, ora perde completamente os referenciais; ora vê-se como parte de um momento único, ora é varada pela solidão de uma alma penada; ora veste a camisa das lutas da moda, ora posa de cética-desiludida ante as derrotas e frustrações de tantas revoluções pretéritas.

Por isso a ansiedade. A ansiedade de querer acertar ou, ao menos, a ansiedade de querer ter certeza. A ansiedade de querer acertar-se com alguma coisa, ou com alguém, de relativa permanência. A ansiedade de querer encontrar-se a si mesmo — em meio a uma existência tão plural e tão indiferente. A ansiedade de querer afirmar-se com único, essencial e importante — ontem, hoje e sempre.

E é na confusão, é no caos, é no desespero que proliferam os falsos profetas, os falsos mestres os falsos salvadores. Cada um pregando a sua fé, cada um ditando os seus preceitos, cada um impondo a sua cartilha, cada um com o seu livro de receitas. Cada um com suas regras de conduta, de best practices, de condenação e de sagração perenes.

Cada um prometendo aplacar toda a ansiedade do universo inteiro. Quando, na verdade, não existem remédios universais para males tão comuns e tão humanos quanto esse. Cada homem tem a sua chave e cada um deve buscar entendimento dentro dos labirintos e das galerias do seu eu. O alívio não está fora, está dentro. A serenidade não está fora, está dentro. A realização não está fora, está dentro.

Conhece-te a ti mesmo. Ouve o que diz o teu íntimo. Cultiva o que tens de próprio e de verdadeiro. Não sucumbe às soluções e aos prazeres que te vendem aqueles que não sabem de tuas aflições e de teus problemas. Guarda a tua essência, os teus tesouros e as tuas vivências para aqueles que, em te respeitando, te compreendem; e para aqueles que, em te amando, te mereçam. Segue teus passos particulares e sê fiel à trajetória que eles descrevem. Acredita na tua estrada pois, mesmo que ela não te conduza a tolas vitórias e a falsos vinténs, ela te trará a recompensa mais honrada e mais autêntica que pode haver: a recompensa de teres sido sempre o mesmo — em todas as coisas, em todas as pessoas, em todos os lugares e em todos os momentos, seja para o mal, seja para o bem.

Nosce teipsum

J. D. Borges