Basta João
João Gilberto continua transformando tudo em standard. “Standard” no sentido jazzístico, ao converter ocorrências estritamente medianas do cancioneiro popular em pérolas do songbook universal. E “standard” no sentido literal, ao elevar realizações sonoras díspares e desencontradas a um padrão de interpretação e de excelência musical que teve poucos equilaventes na história da canção contemporânea. O mistério supremo de João estaria em cultivar e salvaguardar uma pureza e um equilíbrio de execução e de estilo que se, no mundo de hoje, não for uma impossibilidade, é certamente um milagre.
Milagre ainda maior no caso de “Voz e Violão”, em que as interferências são notáveis. No repertório, a injunção fica caracterizada pela presença de sucessos da segunda geração da bossa-nova em meio a clássicos jobinianos, releituras de éxitos latinos e revisões do samba. Uma salada que, por si só, já revelaria os conflitos e as turbulências que permearam a escolha das faixas. A unidade fica por conta de João, que pessoalmente não parece se preocupar com a homogeneidade do conjunto, embora persiga obstinadamente a perfeição de cada uma das partes.
O disco tem como ponto alto o eterno retorno a Antonio Carlos Jobim. Tanto que “Você Vai Ver”, sozinha, teria compensado qualquer disputa e sacrifício. Poderia ter sido lançada em 1958, poderia ter rodado o mundo, e poderia estar consagrada no sempre citado LP “Chega de Saudade” (de 1959). O que prova, ao mesmo tempo, o caráter temporal da bossa-nova e o caráter atemporal de João Gilberto. Uma diluiu-se em modismos e cacoetes inexpressivos, o outro desenvolveu e consolidou sua arte, preservando originalidade e essência.
Menção honrosa também para as reinventadas “Desafinado” e “Chega de Saudade”. Em tons mais sérios e sóbrios, contrastando com a alegria e espontaneidade das gravações de 40 anos atrás. Como se ambas, já senhoras, precisassem de uma nova versão e de uma nova abordagem (que veio amadurecendo em décadas de apresentações por palcos e por noites de platéias nem sempre finas e bem educadas). Dado que João Gilberto definiu modelos insuperáveis de interpretação para as mesmas “Desafinado” e “Chega de Saudade”, ainda no final dos anos 50, reinventá-las seria como reinventar todo o cantar de quatro décadas pra cá.
Ninguém atinou para a grandiosidade de tal. Ou atinou e preferiu abortar, o quanto antes, um projeto que previa a revisitação de outros tantos clássicos.
O grosso dos comentadores preferiu se concentrar nos registros das composições de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Do primeiro, “Eu vim da Bahia”, não à toa uma das mais manifestas influências de João Gilberto, já nos anos 60, na obra de Gil. Menos delicada e doce do que na primeira vez (em “João Gilberto”, 1973), foi suprimida de um verso e meio, o que não parece ter causado nenhum espanto. Espantados, sim, ficaram, os críticos, ao perceber que o pronome possessivo “meu” havia sido subtraído do refrão de “Coração Vagabundo” — possivelmente a maior novidade desde o seu lançamento no LP “Domingo” (de 1967), posto que a gravação de Gal Costa e do próprio Caetano Veloso não deixa absolutamente nada a desejar à gravação recente de seu mestre, não por acaso, João Gilberto.
Eu sou do samba, pois o samba me criou. É fato. Qualquer análise mais superficial de “Voz e Violão” atestaria a intimidade de João Gilberto com o gênero que, no fundo, ele mais compreendeu, amou e propagou: o Samba. Se em alguns momentos do CD ele se mostra tenso e contido — ou por conversar com a geração de seus admiradores, ou por encarnar outro idioma, ou por recriar clássicos de sua lavra — em “Não Vou pra Casa” ele se encanta e ostenta uma felicidade quase pueril, como se pudéssemos ver o sorriso de satisfação em seus lábios. Também em “Da Cor do Pecado”, em que retorna a amores jovens com o mesmo enlevo, e, por fim, em “Segredo”, de uma beleza lírica e poética, perdendo apenas para “Você Vai Ver”.
A capa, o encarte e os demais detalhes da apresentação do disco propõem um segundo descasamento entre o artista e a sua produção, menos tímida que espalhafatosa. La Pitanga ordenando um silêncio quase marcial, logo na primeira foto, não tem qualquer relação com a sutileza e a suavidade da arte de João, que conquista pelo prazer (não exigindo quaisquer imperativos ou imposições). O homem que sequer posa para o fotógrafo é igualmente um símbolo forte. Como que um protesto contra a parte visual da obra. Ou ainda como a mensagem de um músico que diz: fora a música, a Grande Música, nada mais importa.
E é verdade. Por quê deveria importar?