“Todos os homens, diz-nos ele, têm
um desejo natural de conhecer. Amamos a ciência, fora de todo interesse. A
sabedoria é independente da utilidade: ela é tanto mais alta quanto menos útil.
A ciência mais alta é a do objetivo ou finalidade em vista de que os seres
existem. Esta ciência é a única verdadeiramente livre, porque só ela existe
unicamente em vista do saber mesmo. Ela é a menos necessária de todas as ciências,
e, por isso mesmo, a mais excelente. A ciência faz-nos conhecer as razões
inteligíveis das coisas. O ignorante que observa espanta-se de que as coisas
sejam como são, e esse espanto mesmo é o começo da ciência: o sábio se
espantaria de que as coisas não fossem como ele as conhece.”
(Émile Boutroux, em “Aristóteles”)
É sempre uma emoção voltar ao começo de tudo. Ao começo do mundo, ao começo da inteligência, ao começo de nós mesmos. Encontrar-se com a origem das palavras, encontrar-se com a definição dos conceitos, encontrar-se com os pilares da nossa visão de mundo e reconciliar-se com eles novamente. Entender como a sabedoria, o conhecimento, as ciências nasceram e se desenvolveram como se desenvolveram. Avaliar quanta beleza, quanta consagração, quanto amor pode haver na busca pelas coisas primeiras, pelas causas primeiras, que fundaram os homens, os animais, os minerais, os astros, o universo, o cosmos. Deus.
É sempre uma emoção encontrar-se com Aristóteles. Ainda mais pelas mãos cuidadosas e corteses de Émile Boutroux, em “Aristóteles”, sua introdução breve e completa à obra do Estagirita, parte da “Biblioteca de Filosofia” idealizada por Olavo de Carvalho.
Extraordinária a maneira como nos sentimos, nos fazemos, nos tornamos ínfimos diante do fundador, ou continuador, da Lógica, da Metafísica, da Física, das Matemáticas, da Cosmologia, da Astronomia, da Meteorologia, da Mineralogia, da Biologia, da Botânica, da Anatomia, da Fisiologia, da Zoologia, da Psicologia, da Moral, da Econômica, da Política, da Retórica, da Estética, da Poética, da Gramática, e de outras tantas coisas mais que se perderam no passo dos séculos.
Depois desse esforço hercúleo de pensamento, realização e aclamação, é de se surpreender que a filosofia de Aristóteles e, por conseqüência, a Filosofia como um todo, tenham tido, em algum momento da História (como agora), sua autoridade e sua eminência contestadas. Afinal, desde as religiões até o ceticismo mais barato, toda a espiritualidade tem sua formação centrada na Filosofia e em suas bases; desde a abnegação até o materialismo mais deslavado, toda doutrina tem uma dívida incalculável para com os filósofos; desde a especulação mais abstrata até a produção mais técnica e mecânica, toda a sistematização, toda ordenação, todo o método remontam a uma gênese comum: filosófica. Assim, embora Aristóteles, Platão e Sócrates tivessem, ao longo dos tempos, contestadas a legitimidade e a grandeza de seus trabalhos, hoje, por mais desavisados que possamos soar, não podemos negar-lhes a co-autoria, quando não todo o mérito, sobre os maiores monumentos da criação e do pensar ocidental.
É, portanto, obrigação de qualquer sábio ou ignorante, ler, estudar, interpretar, enfim, conviver longamente com essas obras. Mais do que isso: mais que uma obrigação, deve ser um prazer para qualquer um que se digne a compreender a realidade humana em todas as suas dimensões, possibilidades e limitações. Ao contrário do que se costuma afirmar, tal realidade não mudou, em essência, nestes dois mil e tantos anos. O legado do Estagirita ainda nos ensina mais sobre nós mesmos do qualquer tentativa respaldada nos adiantamentos, no futurismo e nos barbarismos de agora.
Quem pode medir o deleite de mergulhar na aurora da Metafísica, explorar as causas material, motor, formal e final, extraindo da “massa informe dos fatos, a formulação lógica da filosofia definitiva”? E que tal familiarizar-se com a própria Lógica, à qual se apela constantemente sem se saber do que ela primordialmente trata? Sem jamais ter ouvido falar nas leis do raciocínio, nas condições da ciência, no contingente e no necessário, no real e no ideal, no fato e no preceito, na natureza e na arte, conforme entendidos por Aristotéles? E as categorias? E os universais? E o tão popular silogismo? E a dialética? O que dizer da original concepção de Ciência: o “conhecimento das coisas enquanto necessárias”? E de Deus, o “pensamento que tem por objeto tão-somente o pensamento”? Vida eterna e excelente, soberbamente feliz, Deus que “não vê o mundo, pois, quando se trata de coisas imperfeitas, não vê-las é melhor que vê-las”. Deslocar-se dentro das esferas da Moral: a Ética (regra da vida individual), a Econômica (regra da vida familiar), a Política (regra da vida social). Descobrir que a felicidade não está no sensível, nem no prazer, nem na honra, quanto menos na virtude (meio-termo entre dois vícios). Constatar que “o lazer não é objetivo do trabalho”, mas sim que “o trabalho é que é objetivo do lazer”. Concluir, no princípio, no meio ou no final que devemos, antes e acima de tudo, “dedicar-nos a nos tornar dignos da nossa imortalidade”.
Pode existir algo mais sublime?
Pode. Que o diga o próximo Aristóteles.
E que ele também nos faça calar.