Brasil: 500 anos de parco amadurecimento intelectual

No Brasil, vivemos todos ilhados. Alguns entregues a uma alienação sem culpa, às vezes tão impregnada de “razões do coração” que a esperança de clareza de pensamento fica relegada apenas à geração seguinte. Se ficar. Outros vivem a ilusão de enxergar mais longe e, na sua ignorância (ou sapiência) de quem conhece quase todos os males nacionais, apontam caminhos para uma possível salvação ou, então, censuram movimentos que consideram perniciosos ao Brasil.

Estamos fartos de doutrinários megalomaníacos, no entanto, é o que mais nos sobra. Cada qual cacarejando nos confins de seu galinheiro, no sonho de agremiar toda a massa, numa revolução contra uma suposta comunidade de predadores. Como inteligência, continuamos tão reprováveis quanto os aventureiros, os usurpadores, os bárbaros, ou como quiserem chamar, que aqui pisaram, buscando glória, fortuna e consagração individual — às custas dos recursos que brotam a terra, das mazelas e do atraso de outros povos, do esforço e do mérito alheio (que se não podemos alcançar, sugamos até à míngua).

É de se envergonhar que, depois de cinco séculos, ainda busquemos consolo no colo da mesma platéia nativa e cativa, ao invés de enfrentarmos os desafios intelectuais que nos cabem de fato. É de se envergonhar que, falando para uma nação de semi-analfabetos, ainda consigamos nos gabar de convencer alguém de umas meias-verdades, ou do sofisma que é a última moda. É de se envergonhar que, mamando nas tetas do corpus ou do ideário alheio, finjamos compor uma obra de sistema e de conjunto que não sobreviveria (e não sobrevive) a um exame minimamente rigoroso, fora do Brasil. E é de se envergonhar que, incapazes de elaborar um discurso próprio ou de aprumar um livro de umas quantas páginas, partamos para a condenação ou para o prejuízo daqueles que, com sucesso, lograram tal.

No fim, cansados de tantas lutas e de tanto grasnar contra o que neste país nunca muda, entregamo-nos aos mesmos vícios e às mesmas práticas que, do alto do púlpito, costumamos execrar. Assim, quem hoje prega a urgente e imprescindível leitura dos clássicos da nossa língua e literatura, amanhã entrega-se aos dramalhões mais reles e torpes (para não ficar “sem assunto” nas rodas e nos círculos de amizade e trabalho). Assim, quem hoje ataca o nu e o sexo, sugerido ou explicitado, encoberto ou praticado, por adultos e crianças, amanhã vai exaltar “de boca cheia” a preferência nacional pelas proeminentes nádegas (ou discutir com minúcia ginecológica os atributos físicos da mais recente modelo). Assim, quem hoje distribui saraivadas contra a incompetência, a corrupção e o favoritismo, amanhã quando tiver nas mãos um projeto, um departamento ou uma divisão para tocar, vai apadrinhar compadres e ideólogos de mesa de bar, ao invés de cercar-se dos comprovadamente melhores e mais capacitados. Assim também, quem hoje combate mui ferozmente o reino da futilidade, da falsidade e das aparências, atacando a superficialidade da mídia e o poder da imagem, amanhã entregar-se-á de bom grado a uma bela sessão de fotos, abrindo as portas de sua casa e de sua intimidade para o veículo mais inescrupuloso e influente que se puder encontrar.

Se não podemos resolver questões tão domésticas de identidade e de coerência interna, o que dizer de nossa representatividade ante as demais civilizações? É ela inexistente, senão ridícula. Apenas para ficar em manifestações contemporâneas de nossa criação: na Pintura e na Escultura, paramos nos modernos. O abstracionismo, que não repercutiu senão em círculos de grã-finagem (ou na cabeça dos nossos ininteligíveis “críticos de arte”), impôs sua ditadura de hermetismo e incompreensão, no limite do jocoso e do estrambótico. O Brasil, que mal teve chance de amadurecer sua inclinação figurativista nata, logo partiu para a fragmentação e para os “ismos” das cansativamente retomadas “vanguardas”. Na Literatura, paramos no Regionalismo de sessenta (ou mais) anos atrás. O romance urbano, embora desenvolvido à perfeição na última fase de Machado, nunca vingou: ou cedeu à formulação fácil e psicologicamente rasa dos ditos policiais; ou embrenhou-se em veredas de perigosa invenção, oscilando entre o ornamental e o intragável (rendendo teses e mais teses de mestrado e doutorado). Nossos poetas, confinados à irremovível barreira da língua, jazem esquecidos na nossa notória falta de memória. Na Música, desperdiçamos pelo menos três visionários nesse século que passa: Villa-Lobos, Caymmi e Jobim. Homens para fundar escolas e tradições — desafortunadamente atropelados: ou por seguidores pouco talentosos; ou por apoio e reconhecimento raquíticos; ou por agentes equivocados (e seus interesses puramente pecuniários).

Nossas academias são pura ficção. Mal falando Português, tropeçando nas quatro operações básicas da Aritmética, ingressamos à Universidade com a pretensão de apreender as lições de Newton, Eisntein, Darwin, Freud, Hegel, Descartes, Maquiavel e Platão, monumentos e revolucionários do pensar universal — milagrosamente incorporados ao nosso répertoire depois de quatro ou cinco anos de mal disfarçadas paródia, síntese e macaqueação. Nossos institutos, grêmios e associações, em geral, orbitam em torno do próprio umbigo, alimentando as vaidades e a maledicência de seus membros-fundadores, perdendo-se no provincianismo e nos ecos de falsos debates.

Nossa espinha dorsal está corrompida e podre.

Com a globalização da Economia, da Política e, mais adiante, do Direito, da Educação e do Conhecimento, porém, nossa “elite”, improdutiva e incompetente, tende a ser destituída de seus títulos e cargos, progressivamente. Modelos de organização e de eficiência, que hoje põem abaixo os privilégios e as benesses dos nossos clássicos “barnabés” (públicos e privados), amanhã tendem a se espraiar, chacoalhando os alicerces de toda a vida nacional.

É apenas questão de tempo. É esse o passo do Mundo.

Atolados no lodo e na confusão de sempre, não conseguiremos, mais uma vez, nos salvar. Salvar-nos-ão eles.

Quem sobreviver verá.

J. D. Borges