Marisa Monte da cabeça aos pés

Marisa Monte. Compositora e cantora bissexta. Beldade e voz da música pop popular brasileira. Produtora associada a Arto Lindsay. Parceira constante de Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes. Sempre influenciada pelos sons dos Sessenta e Setenta. Entusiasta dos sambas de Paulinho da Viola. Fã de Jorge Ben antes de Jor. Descendente da Velha Guarda da Portela. Bebendo também Nelson, o Cavaquinho. Continuando a linhagem de intérpretes da MPB. Pinçando achados de Caetano Veloso. Mais uma vez se apresenta Marisa Monte, em “Memórias, crônicas e declarações de amor”.

Abre o álbum, de fotos e canções, com suas incursões pelo mundo pop. Servindo-se de dois de seus papas, Antunes e Brown, introduz com “Amor I love you” — construção bilíngüe típica do omelete man, interpolada pelas falas do poeta paulistano, em leitura do já clássico Eça de Queiroz. Amarra, portanto, as sentimentalidades, por vezes condenáveis, ao peso da melhor literatura portuguesa. “Deixa eu dizer que te amo / Deixa eu pensar em você” enquanto “a alma se cobre de um luxo radioso de sensações”.

“Não vá embora” é hit certo, se já não o foi. Conduzida na batida setentista do rock e pelas guitarras e cítaras nunca antes tão pesadas de Davi Moraes, Marisa se impõe: “E no meio de tanta gente eu encontrei você / Entre tanta gente chata sem nenhuma graça”. Junto com “Não é fácil”, aposta em quem ouviu muito teclado Moog, Hammond, e em quem, como Lenny Kravitz, cravou seu referencial naquela transição entre os hippies e os dancing days. Em linguagem direta, cotidiana, foca a sua atenção em sentimentos e palavras simples.

O segundo ciclo do disco, de parcerias mais amadurecidas do triunvirato Monte-Antunes-Brown, começa com “Perdão você”. O dedilhado cromático das cordas do violão e a cama de celos impõem uma ginástica vocal de “cores-imagens, cores-imagens, cores-imagens, cores”. Harmonicamente transpõe a aura juvenil do primeiro ciclo. Também em “Tema de amor”: “Eu conheço todo jeito / Todo o vício, sem te tocar”. De temática mais adulta e sutil, sofistica igualmente nos arranjos e na instrumentação. Ponto alto: “Abololô”, em que reina o piano jobiniano de João Donato. É Marisa mostrando que sobrevive à densidade do instrumento, e que abre uma fresta a ser explorada talentosamente num futuro. Desgarrada, mais à frente, está “Água também é mar”.

Como não poderia deixar de faltar, no terceiro ciclo, o tributo a seus mestres. Paulinho da Viola na forma perfeita de “Para ver as meninas”: “Hoje eu quero apenas / Uma pausa de mil compassos / Para ver as meninas / E nada mais nos braços / Só este amor assim descontraído / Quem sabe tudo não fale / Quem não sabe de nada se cale”. Se for preciso eu repito. Em evocação doce da Velha Guarda. Na seqüência, “Cinco minutos”, de Jorge Ben, naquele cantar falado ou naquele falar cantado. Pois você não sabe quanto vale cinco minutos, cinco minutos, na vida. Também “Gotas de luar”, em versos impecáveis de Nelson Cavaquinho. Tão redondos nas suas rimas e nos seus vocábulos, que sucumbe à consagração do lugar-comum. Encerra-se o ciclo com outro ponto alto: “Sou seu sabiá”, do Veloso. Ainda que encarne Gal Costa, principalmente nos primeiros instantes, Marisa faz triunfar sua versão de uma pérola do cancioneiro caetano-emanuel-viana-telles-velosiano. Delicada e de grandiosidade cinematográfica, fecha em clímax — característica que se mantém desde os outros álbuns.

No que não concerne à música, nota-se, do título ao encarte, uma preocupação com a palavra escrita: “memórias, crônicas e declarações de amor”, na segunda e terceira páginas: os olhos à la Marcel Proust, a citação e a leitura do “Primo Basílio”, o trecho “por isso eu lhe pergunto, se é mais inteligente, o livro ou a sabedoria”, a estante em que sobressai Virginia Woolf, o enquadramento de “Senhora” de José de Alencar, a letra de uma faixa não incluída: “No time to loose”, e no fim: “textos, provas e desmentidos”.

Misturado a isso, um maior intimismo nos takes: seja nas expressões do rosto, entre estudadas e personalistas; seja no destaque a segmentos de sua coleção de CDs; seja no amontoado de coisas em um lugar que parece ser um estúdio, uma morada temporária; seja no registro de seu dia-a-dia, provavelmente na época da gravação; seja na foto que ela tira inadvertidamente de quem quer ouvi-la.

É Marisa Monte, no culto a si e aos seus. Nem tão elevada, nem tão trivial. Apenas Marisa Monte.

Da cabeça aos pés.

J. D. Borges