Notícias de um plano alto

Dentro do largo conceito de “clássico”, podemos facilmente encaixar aquela categoria de livros pouco lidos e, paradoxalmente, muito comentados. A partir de uma frase tomada ao acaso, a partir de um ponto de vista pinçado maliciosamente ou, mesmo, a partir de um mal-entendido erigido com certo grau de inocência, fragmentos de uma determinada obra tomam o lugar da obra mesma, reduzindo um livro, obrigatoriamente denso e multifacetado, a uma meia de dúzia de opiniões de ocasião a respeito dele. (Opiniões que, não raro, convêm àqueles que detêm a palavra e o poder naquela particular configuração de espaço e tempo.)

Clássicos marcam época. E clássicos caem de moda as well. Apesar das homenagens e dos puristas (e sempre os há), autores, obras-primas e seus respectivos rótulos (sobretudo os rótulos) são varridos para debaixo do tapete da História incessantemente. Aposta-se sempre, é claro, em redenção, num futuro mais justo e esclarecido (no sentido iluminista do termo), em que todos os homens serão bons, em que não haverá mais guerras e em que a paz celestial triunfalmente reinará.

Afinal, você acredita em clássicos?

Mario Sergio Conti acredita e, coincidentemente, acaba de publicar um. O clássico em questão atende por “Notícias do Planalto”: um alentado volume que trata, dentre outras coisas, do controvertido universo da política — misturada à imprensa, misturada às tradições oligárquicas do Brasil, misturadas às famílias e aos nomes que fazem e desfazem o dia-a-dia e, portanto, a História deste país.

Pois uma Nação que não produz livros e que não produz estudiosos de relativa monta está condenada a requentar velhos diários, está condenada a se pautar por bolorentas reportagens, está condenada a buscar sua identidade em videotapes e em parcos registros de áudio. Pior: está condenada a se formar, como consciência e como vontade, a partir da análise imediatista e atabalhoada dos nossos comentaristas de última hora.

Conti, apesar de egresso do urgente (urgentíssimo) meio jornalístico tupiniquim, sustenta preocupações que transcendem a semana, a quinzena, o mês, ou a retrospectiva anual. Propõe uma varredura minuciosa e estilisticamente isenta da ascensão e queda do mui recente fenômeno Collor. De forma nada menos que modelar, elenca as contribuições de cada veículo da grande imprensa (escrita e falada), dando nome aos bois, trazendo revelações dos bastidores e, informalmente, contando a História dos órgãos e dos grandes nomes que traçaram o perfil do Brasil na mídia dos últimos anos.

Invejar-lhe-ão, no entanto, o trabalho tão aprumado e sólido. Brasileiros têm dessas. Aferroados a filosofias de conversa de bar, preferem denegrir a realização alheia, evocando obsoletos e duvidosos critérios éticos e ideológicos, a enfrentar inconsistências e imperfeições do próprio pensamento — seja diante de uma folha de papel em branco, seja, mais grave ainda, diante da perspectiva de um livro que lance algo de original e de coerente no ar.

Nossos intelectuais de blablablá preferem se refugiar no cordão dos vitimados a lançar-se na imensidão do conhecimento e da dúvida a fim de responder a essa interrogação perene que é o Brasil. Acorrentados às suas cartilhas e aos seus gurus (que não fazem senão ecoar os gurus lá de fora) não têm autonomia alguma para reconhecer o mérito alheio, quanto mais para juntar meia dúzia de idéias que valham à pena e que parem em pé. Quando atingidos em seus brios e orgulhos de quem não fez nada além de regurgitar algumas croniquetas, costumam revidar desqualificando o adversário com ataques personalíssimos — ao invés de criticar-lhe a iniciativa com argumentos de gente grande.

Ninguém tem razão. E todos a têm ao mesmo tempo, escreveu-se. Impossível, de antemão, respeitar e conciliar todos os juízos e todas as visões de um mesmo período num único livro. Ainda mais quando a maior parte das personagens passeia vivíssima pelas ruas da época contemporânea. É natural que se rebelem contra uma ou outra omissão, contra um ou outro enfoque, contra uma ou outra ênfase — é aquela história de gregos e troianos. O que não se admite, porém, são os julgamentos e as condenações, ambos peremptórios, à empresa de Mario Sergio Conti. Iniciativas assim, num país de illettrés como o nosso, têm de ser exemplarmente aplaudidas, não importando quem são os donos da verdade ou da veracidade dos fatos.

Por outro lado, refutações e polêmicas de toda a ordem só fazem confirmar a legitimidade e reforçar o caráter do referido clássico. Quem quiser negá-lo à altura tem toda a liberdade de responder-lhe com uma obra de igual ou de maior porte.

Clássicos infelizmente são assim. Quem quiser que escreva outro.

J. D. Borges