A Sociedade Anti-Social

Constantemente, atribui-se o individualismo contemporâneo à vitória da bourgeoisie em 1789 e à sua consagração como classe soberana a partir dessa data. Diz-se também que, paulatinamente, o “comum” foi dando lugar ao “próprio”, e que a “coletividade” passou de força de coesão a mera abstração ou a mero recurso de oratória. Reporta-se, igualmente, o esfacelamento das instituições e agremiações, bem como a apropriação de bens e direitos, de um povo ou segmento social, por aristocracias atrasadas ou por um único particular, agigantado e megalômano.

Independentemente de quem quer que seja o culpado por esse desenvolvimento anti-social de pessoas e nações, chegou-se ao ponto alarmante em que as tensões entre “pessoal” e “geral”, outrora aplacadas ou brandas, explodem em cenas de violência flagrante, de combates sem justificação, de verdadeira guerrilha urbana. Diariamente. Nessa toada, o anticristo de Nostradamus, o arauto da Terceira Guerra Mundial, não precisará de feições orientais nem de disco voador, virá de dentro de cada ser humano, da revolta interior, do ego abafado — daquele que numa batalha inglória combaterá individualmente o seu semelhante, em meio a cenários da mais avançada e selvagem civilização.

Isso pois, o ódio semeado dia a dia, irradiado hora a hora, multiplicado minuto a minuto, movimentar-se-á na crosta do tecido social, fincando raízes profundas, dinamitando integridade e caráter sólidos — para depois cuspir sua lava nefanda e mortificante, dizimando vidas inteiras, relações preciosas, sonhos de construção e de mundo, que, abreviados, jamais verão a luz do dia ou o clarão da noite.

A humanidade globalizada conecta-se a uma cadeia de vontades, de gostos e de insatisfação, de modo que o cutucão, o soco, o pontapé, que hoje se distribui, pode ser propagado em linha reta, homem-a-homem, potencializando seus efeitos junto a outras pressões, — para amanhã voltar colossal, irreconhecível, represado num único ente, que armado de revólver, granada ou metralhadora, descarregará sua munição, de dor e de desamor, na platéia mais desavisada e cândida.

Apesar da liberdade que se pretende propagandear, o homem deixou de ser a medida de todas as coisas. O homem não é mais a meta, não é mais o fim, não é mais o objetivo por que se costumava lutar. O homem, como em eras divinais ou tirânicas, tornou-se apenas motor — meio para realização de empresas impessoais e sobre-humanas, em nome de interesses absolutamente cegos e temporais. Assim, nesse mar de intensa competitividade, nessa olimpíada de exigências e de resultados, nessa incessante corrida por sucesso, dinheiro e felicidade, o homem se esqueceu de si próprio. Em nome de um certo materialismo, da acumulação de informação ou de capital, abdicou de seus deveres cívicos e morais, assumindo uma dívida que só faz crescer e que já vem sendo cobrada sem piedade.

As cidades são planejadas, as escolas são estruturadas, as famílias são organizadas, o trabalho é racionalizado tendo-se em vista uma eficiência mais que maquinal, um progresso e um avanço que se manifestam como o desejo de todos, como a razão de existir e de viver do ser humano. Pouco importando os anseios e as agonias de cada um — para isso surgiram os doutores da mente, para isso sintetizaram uma porção de pílulas de bem-estar, para isso montaram as clínicas de recuperação, as cadeias e as academias de ginástica. Afinal, não é só trocar o óleo, limpar o carburador, azeitar as engrenagens e substituir algumas peças de vez em quando?

O homo sapiens está se condenando ao mundo e às fomes que ele mesmo inventou. Serve a um deus que, como o diabo, tem um milhão de nomes, e que se confunde com ambições altamente legítimas e honoráveis. Fortuna, poder, sexo, status e gozo — é por essas e por outras que se anda em disparada, que o espírito se desfaz em decadência e em corrupção, que se pisa e que se rasga a alma do próximo. Tudo, absolutamente tudo, pode e deve ser sacrificado, como nem Niccolò Machiavelli poderia imaginar.

Acontece que nem todos suportam esse peso e esse pacto.

E estão começando a disparar contra nós.

J. D. Borges