o café frio como os lábios de um morto
eu deixei de lado
como deixei de lado a lembrança da luz dos teu olhos
o cigarro metade queimado, largado na boca do cinzeiro, lambendo suas próprias cinzas
eu deixei de lado
deixei de lado como deixei de lado o perfume da tua voz
perfume que tanto ouvi
nos ônibus sacolejantes
nas ruas cheias de gente e desprezo, cheias de amor e ódio - nas ruas das possibilidades perdidas e das possibilidades encontradas, das possibilidades tantas vezes desperdiçadas
a minha vida, o café frio, o cigarro queimado, deixei de lado
a minha vida que foi sua voz, seus gestos, seus risos, seus choros (tão doces choros!)
a minha vida que foi, principalmente e talvez só isso - a lembrança disso tudo (a lembrança dos sonhos que você foi)
a minha vida! deixei de lado
eu, que me desfaço no cinzeiro sincero do meu quarto, esse meu amigo de tantos cigarros tantas mais solidões, minha urna, meu crematório de bolso, eu, contemplando minhas próprias cinzas que um dia amaram, e lembraram e amaram e lembraram (a vida se passa é no passado)
Mas agora que sua voz
como um albatroz abatido
despencou do céu às cinzas
agora que seu rosto não mais se reflete no espelho em que me olho
nem nos ônibus
nem nas ruas
nem nas dores
nem nas rosas
agora que aos seus olhos os meus têm antolhos
agora que seu rosto
que pra mim já foi deus - e demônio
já foi anjo - e prostituta
agora que seu rosto
que já foi lindo, já foi feio
já foi jovem, já foi velho
agora que seu rosto
profundo, puro, raso, roto
me desapareceu
como um maldito morto
deixo de lado
o passado que passei e fui
neste presente imprestável: a morte mais forte que a morte.
"Tenho
um quarto de século, mas me sinto um homeless nesses tempos de decadência
cultural. Meu principal objetivo é me aprofundar na alma dos homens, embora
ache o corpo da mulher infinitamente mais interessante. Por uma fatalidade geográfica,
nasci no Brasil, mas meu país de coração começa na sola dos meus pés e
termina no meu último fio de cabelo. Não sou negro, nem gay, nem deficiente físico.
Sou fumante. Nunca conheci ninguém parecido comigo, portanto me considero a
menor das minorias. Como Saul Bellow, gosto do que é bom e não gosto do que é
ruim. Acredito em deus, mas ele não acredita em mim. Tenho manias extremamente
estranhas, como pensar e amar. Nasci sabendo tudo, mas fui esquecendo com a
idade. A maturidade, que ameaça bater em minha porta, parece vir da completa
ausência de certezas. Mas não tenho certeza disso. Não sou homem de ambição.
Daria meu pequeno reino por um pônei. No mais, sou consistente como o vento, e
grandioso como um grão (grãodioso, diriam os irmões Campos Brothers). E, como
é po
O
autor, junto com Rafael Azevedo, é um dos idealizadores do site:
www.pindorama.net