Afinal nós, homens, não somos de ferro

Às sextas-feiras, como todo cidadão respeitável, ele chegava cansado. Mesmo não sendo cidadão, porque ele ainda não era, digamos, produtivo; ele só estudava. E mesmo não sendo respeitável. (Aliás ele odiava esta palavra, lembrava-lhe conformismo, que, por sua vez, lhe lembrava mediocridade. Para ele, era preferível estar morto a estar vivo e medíocre. Se é que alguém pode estar medíocre. Bem, não importa...)

Naquele fim de tarde ele queria esquecer. Esquecer como se "esquece" a vida nos fins de semana, como se "esquecem" os problemas, as preocupações, as obrigações, etc. Mas ela voltou a atormentá-lo com os telefonemas que haviam se tornando inconvenientes e, ultimamente, assustadores.

Ele conheceu-a em uma daquelas festas caça-níqueis: enchia a cabeça de cerveja e qualquer coisa era lucro. Qualquer coisa mesmo. Tanto é verdade, que quando lembrava de algumas quaisquer coisas com as quais havia passado a noite, ele ria e agradecia a Deus (quem quer que Ele fosse) por não terem havido testemunhas. Quer dizer, pelo menos aparentemente.

Ela, à primeira vista, pareceu ser mais velha do que ele. E, à segunda vista, bem mais velha. Aquilo significava (novamente à primeira vista) uma possibilidade facilitada de sexo. As mulheres de trinta quando querem não têm freio e quando não querem não há meio. "E elas, na maioria das vezes, querem. Para elas é algo natural, sem traumas..." — pensou ele. Um corpo interessante e as já mencionadas cervejas fizeram o resto.

Conversaram e, sem muita delonga, vieram os beijos. A coisa continuou como bem sabemos: ele ávido e ela cautelosa-mas-nem-tanto (como convém às mulheres). Até que:

— Eu não vou fazer o que você está querendo! Eu não sou como as outras garotas com quem você está acostumado. — Era ela, que conclui ainda com: — É claro que eu gosto de ser tocada, mas... Eu nem te conheço!! Você tá pensando que eu sou o quê??

Ele então, com sabedoria e uma noção exata de timing (ele adorava esse termo!), tomou a palavra. Explicou que não estava pensando que ela era nada, simplesmente as coisas foram acontecendo e... "Você sabe, eu sou homem e nós, homens, sei lá, sempre estamos dispostos a..., usamos todos os meios para... Desculpe se te ofendo, mas quando eu tenho vontade não consigo me controlar...". Foi absolutamente sincero e, talvez por isso, absolutamente convincente; tanto que tentou memorizar os argumentos e, se possível, as frases para ocasiões semelhantes e tão cruciais quanto. Na verdade, ele não sabia se tinha sido tão bom assim. O que ele sabia é que alguma coisa, que ele havia feito, havia, de alguma forma, funcionado.

Ela abaixou a guarda. Convencida por ele, ou vencida por sua insistência, ou mesmo vencida pela sua própria vontade, ou uma combinação de tudo isso. A coisa só não se consumou ali, no carro dele, porque já era quase dia e não havia aquela privacidade mínima imprescindível nesses casos.

Aconteceu num drive-in, dois dias depois. Drive-in porque ela objetou muito prontamente ao ouvir a palavra "motel": — "Não gosto desses lugares; dá a impressão de que só vamos lá pra fazer isso." Como ele ainda queria muito, para amenizar a situação, sugeriu o drive-in. "Uma idéia das mais infelizes" — pensou depois, mas era "isso" ou nada. E "isso" para nós, homens,... vocês sabem...

Ele, por vários motivos (não só pelo incômodo do drive-in), não quis repetir a dose, não quis mais vê-la. Ao menos por algum tempo. Sentia um pesar pela diferença de idade, por não gostar dela e por serem pessoas diferentes, vivendo em realidades mais diferentes ainda. E afinal de contas: Já tinha comido, não tinha? Resolveu esquecer. Mas ela não.

Ela ligou para ele nas semanas seguintes. Na última ligação, fez comentários tristes, ressentidos mas com uma pitada de vingança; algo como uma maldição. O que produzia um efeito do tipo "você não perde por esperar". Nosso herói imaginou o que poderia acontecer de mais diabólico: E se ela simulasse gravidez? E se ela estivesse realmente grávida? Pensando bem, isto era possível? (Teria de relembrar toda a movimentação no drive-in!) E se ela resolvesse comunicar a "boa-nova" diretamente aos familiares dele, caso ele continuasse a ignorá-la? Daria para suportar uma chantagem como esta?

Desta vez (voltando à cena inicial), ela ligou, esperou ele atender e manteve aquele silêncio como que à espera, à espreita de uma confissão, de uma frase perdida ou mesmo de um palavrão qualquer; o quer que fosse. Quando outra pessoa, que não ele, atendia, ela mandava chamá-lo; ele atendia e, outra vez o tal silêncio. Ele desligava sempre. Ela, no entanto, ligava de novo, ligava em seguida. Era insistente. Era obsessiva como os piores pesadelos (onde vive-se situações pavorosas incontáveis vezes.)

A única saída manter o telefone ocupado, ela acabaria desistindo. A única saída era ligar o mais rápido possível para alguém. Para alguém, qualquer um! Na confusão, provocada pelo desespero da perseguição telefônica, ele esquecia os números que sabia de cor, pegava e derrubava a agenda no chão, amassava-lhe as páginas, discava números errados, confundia nomes,... Não encontrava nenhum amigo em casa. O primeiro e único disponível disse que estava de saída e desligou, cinco minutos após haver atendido. Ela, óbvio, esperou o telefone desocupar e tornou a telefonar. Ele atendeu. Silêncio! "É o fim do Mundo! A mulher é paranóica! Socorro!"

Percorrendo os olhos pela mesma agenda, que folheava agora com mais pressa, resolveu apelar para pessoas que não via há muito tempo. Acabou ligando para uma garota conhecida da praia e que fugira dos seus telefonemas há alguns meses atrás.

Foi um milagre, ela atendeu na hora e não desligou.

— Fulano, Fulano... Que Fulano??

— Eu te conheci na praia. No verão. Caiu aquela chuva, nós ficamos no mar... lembra?

— Ah... lembro.

— Lembra mesmo? Não tá parecendo.

— Como poderia te esquecer? Você me deixou lá no fundo, para morrer afogada!!

— Imagine, por que eu faria uma coisa dessas??

— Isso não se faz, eu te disse que não sabia nadar!

(Ela então pára por alguns segundos, pensando...)

— Por que você resolveu ligar agora, depois de tanto tempo?

— Porque você não atendia quando eu liguei antes. Diziam que você não estava, que não morava aí...

— Fiquei brava com você. Eu quase morri, sabia? Você é louco!

— Desculpe... Não tive a intenção...

— Mas e aí... quer me ver?

Neste momento ele ficou atônito, gaguejou um pouco. Lembrava-se de que tinham ido "bem longe" naquele dia, no mar. Ela tinha sido fácil, mas essa agora era de lascar, incrível! "Quer me ver? Está se oferecendo! Está propondo! Nunca vi isso na minha vida.... Não acredito... Bem, vamos aproveitar!" Voltou à conversa animado:

— Então... ao vivo você me perdoa? Juro que eu não imaginava que você poderia se afogar...

— Depende... Isso vamos ver na hora...

— Bem, nesse fim de semana eu não posso, tenho duas festas: hoje e amanhã.

— Mas as festas são de noite, não são?

— São, é que eu pensei que você quisesse...

— E de dia?

Marcaram de se encontrar no dia seguinte, às duas horas. Não foi difícil se reconhecerem. Menos difícil ainda foi se "conhecerem melhor", desta vez num motel. Foi bom, mas como da outra vez, ele não quis repetir a dose e nem vê-la de novo.

Da primeira, ele recebeu mais um ou outro telefonema daquele tipo mudo. Às vezes, ela ainda liga e mantém o tradicional silêncio. Mas é só ele desligar uma vez. Ela não insiste mais. Só liga de novo, se ligar, dali a uma semana ou mais. Já não o preocupa mais.

Da segunda, ele nunca recebeu, nem receberá, nenhuma ligação. Não lhe deu e nem nunca lhe dará seu número de telefone.

Acontece que, ultimamente, ele anda meio carente. Para ser sincero, ele anda subindo paredes. E, bem... Tem pensado seriamente em ligar de novo. Só mais uma vezinha. Afinal, uma só não mata ninguém. Uma a mais, uma a menos... Ela era até gostozinha, não era? Tinha uns... Tinha uma...

Amanhã ligo.

J. D. Borges