Carlinhos Brown é o Soul que Xangô Mandou

Quem é que põe o ex-titã Arnaldo Antunes para versificar canção de axé music? Quem é que, dispondo de Marisa Monte, relega sua portentosa voz a meros backing vocals? Quem é que dispensa o prodigioso violão de Davi Moraes, preferindo sua participação como baterista? Quem é que coloca o célebre arranjador Jaques Morelenbaum para tocar "clotares"? Quem é que conta com a sofisticada orquestração de Eumir Deodato para ornamentar música pop? Quem é que troca a produção cult de Arto Lindsay por sua performance ao "canudo"?

É Carlinhos Brown, o efetivamente genial timbaleiro da Bahia, o polimorfo que sonoramente tudo ambiciona e que musicalmente o todo abarca.

Ressurge, em novo CD, como reencarnação do deus Pan. (Pan — palavra de origem grega que designa "tudo", "todos".) Ressurge, avassalador, em seu mais recente trabalho: "Omelete Man" — o maior lançamento de brazilian world music de todos os tempos.

Preliminar o Mel de Amar

O disco começa com o tema-título. A introdução se faz pelo som dos metais e dos timbaus — evocando a consagração global do compositor, por meio da Timbalada. Evolui para uma levada cíclica que desemboca em vocalização sofisticada e em poesia predominantemente fonética (ambas permeiam toda a obra).

Carlinhos rege não só uma salada instrumental esdrúxula, mas também vozes e palavras. Coloca o "cantar" a serviço da música — não da comunicação, da "mensagem". Assenta os vocábulos primeiramente por seus efeitos fonéticos, segundamente pelos sentidos que possam expressar.

Encerra, assim, lirismo e poética próprios.

Ninguém Adocica Só

Anárquico, Brown não respeita o roteiro do encarte; nem as expectativas do ouvinte mais experimentado. "Vitamina Ser" não principia pelo primeiro verso, mas pela imitação de canto de bicho, seguida de coros de "poeira" (?), seguidos de coros de "vou levar" — que, na verdade, se revelam coros de "boulevard" (!).

"Omelete" não é fácil de cantar. Carlinhos aumenta e diminui a velocidade de emissão das frases, tornando algumas delas impronunciáveis.

Entrecorta "vai-e-vens" repetitivos — que na mão de outros compositores poderiam se fazer monótonos — inserindo neles quebras rítmicas providenciais.

Como toda obra-prima, o disco, em nenhum momento, recai no movimento óbvio, na saída elementar.

Para Perto ao Peito Vem

"Hawaii e You" é a elegante balada em que se alternam pianos, violinos, guitarras e sussuros do mulherio — todos celestiais. Inevitável trilha sonora de novela, deve ser ouvida urgentemente — antes que se esgote na execução exaustiva e letal dos impiedosos disc-jóqueis nacionais.

Situa-se, prodigiosamente, entre o elevado e o rasteiro, entre o chique e o brega, entre o fino e o piegas. De aplicação vastíssima, guarda tendencias auto-destrutivas.

Para o Irará Irei

"Irará": interlúdio lúcido entre canções românticas; entre amores subsequêntes. Para meditar na praia. Clamores de longa distância confundem-se com guincho de aves, provocando agradável sensação de calmaria e profundidade. 

Só o Indo Ia

O que esperar de uma peça pop que, descaradamente, começa por "Come on my love" ? É a faceta sessentista-hiponga, setentista-glam, trompista-Beatles, esganiçada-Lenny Kravitz, de Carlinhos Brown.

Impressionante como, mesmo recorrendo a hinos tão revisitados, ele consegue ainda assim soar original. Em suas mãos, mesmo o pastiche mais manjado se converte em contribuição enriquecedora, em colaboração louvável.

You Guera-Guera to Gerare

"Water My Girl" inaugura o ciclo "levanta poeria" do "Omelete". Não dá tempo ao ouvinte para pensar, arrastando-o numa batida caminhante, contagiante, sacolejante, gilberto-gílstica.

Exaltando a agilidade incontrolável da faixa, Carlinhos emenda "locuções aparentadas" indefinidamente ("Mala, com mala, não mala") — atingindo o limite da repetição mecânica, puramente sensorial, em que voz e violão se transformam em mero contra-ponto para a bateria do Moraes.

Éter Now

Enfim "Tribal United Dance" — um índex para o disco, para a obra do artista e para o próprio Carlinhos Brown. Alterna passagens memoráveis, sacadas formidáveis, intervenções magníficas.

É ele, indubitavelmente, a "Matéria Eterna" — para construções, desconstruções, edificações e demolições de toda a sorte.

Como resistir à sequência sinfônica george-martiniana de "Baribiraba, deep deep", passando por "Sábado, Sábado, Sábado", por "Quem pode pode", por "Ô ô ô, Ah, ah, ah", voltando ao princípio, entoando o título em afro-english, retomando "Baribiraba, deep deep" e findando em "Pra comemorar"?

Vai Brincar o Carnarval

Filhote da simplíssima "Água Mineral", "Cachorro Louco" inaugura, com guitarra distorcida e coral muito macho, o ciclo carnavalesco da presente obra.

Se não acabarem com aquela popular festa de quatro dias e cinco noites, que precede a quarta-feira de cinzas, ouvir-se-á o slogan de Carlinhos em toda a parte.

Zabumba e Duas Tumbas Carrego sempre na Mão

Trombone, trompete e saxofone, dominantes em "Faraó", retomam o embalo dos grandes salões, dos grandes bailes, das grandes folias. É confete e serpentina pra todo lado. Tataraneta de "Alá-lá-ô", volta àquele cenário egípcio-sambista-clássico.

Porém, quando menos se espera, uma turba de "u-u-u" e de "hei-hei-hei" prepara o terreno para a citação explícita de um dos hits da Timbalada. É Brown sampleando a si mesmo, antes que o façam sem o seu consentimento.

Direto pra parada de sucessos.

Tchublac, Tchublic, Tchublic, Tchublic, Tchublá

"Amantes Cinzas" é Carnaval de Rua, misturado com Frevo, com bandolim de Choro, com figuras tarimbadas (Colombina e Pierrot), com "laiá-laiá", com mesa de bar, com pandeiro, com batuque de copo — e com a mais contagiante onomatopéia-musical jamais inventada (adivinhe qual?).

De fácil digestão, vai grudar no seu dial. 

Talvez Eu Mate o que Fui

"Busy Man" é terrivelmente urbana — a começar pelo nome. Provavelmente resíduo da parceria que originou o brilhante "Cor de Rosa e Carvão", há quatro anos atrás.

É Carlinhos tentando a sorte em Nova Iorque. Tem chuva, tem solidão, tem passagem em inglês, tem laivos de gospel e tem a única aparição solo da mais internacional das nossas cantoras: Marisa Monte.

Já já em todo o canto da metrópole mais próxima de sua casa.

My Som Is You

"Cold Heart" é o lado crooner, jazzy de Brown. Testa, na canção, seu alcance e sua potencialidade como intérprete e — por quê não dizer? — como galã.

Seguindo a regra de todo o experimento a que Carlinhos nos submete, é de se admirar. Principalmente pela orquestração, pelo delicioso piano e pelos ecos — todos deveras envolventes.

Um verdadeiro sedutor, esse Brown.

Um Jardim Felicidade

"Mãe que Eu Nasci" é um tribulo às velhas guardas; um agradecimento aos pais, aos mestres, às influências, às tradições, aos luminares. Supreende, pois Brown não a modifica, reprodú-la com altíssima fidelidade, mantendo inclusive a letra rebuscada, pronominada, corretíssima.

Reside aí também sua grandeza, visto que mui respeitosamente presta contas aos seus ancestrais. Ao contrário das ordas de jovens criadores de agora, não olha com desdém, nem tenciona por abaixo, tudo o que se sedimentou antes de sua chegada.

No Sol Açoite

"Músico" segue no ciclo sério de "Omelete". São evidentes as menções a Ivan Lins e Edu Lobo. É Carlinhos se afirmando "adulto", mostrando-se harmoniosa e melodicamente "maduro", respondendo aos detratores de suas realizações alegres demais. Não à toa, proclama: — "Eu sei do Tom" (grifo nosso).

É Brown expandindo os seus domínios com propriedade, com profundidade — filosofal, bossa-novística.

Junto a Deus

"Hino de Santo Antônio" fecha o disco com religiosidade, coincidentemente ao que se fez em "Tropicália".

Embora assuma-se herdeiro da geração MPB de 68, Carlinhos Brown supera, em alcance, em eficiência e em objetividade seus mentores mais consagrados. Sábio, não fez de sua música bandeira política, abandonando as quimeras de quem quer, o povo, "conscientizar".

Excelência Atemporal

"Omelete Man" carrega mais centenas de invenções, de visões, de interpretações, de digressões, de tesouros, de legados, de significados.

Como autêntica obra-prima, jamais se esgota. Presta-se a infinitas incursões, a infitinas abordagens.

Qualquer um que pretenda compreender o Brasil e sua Musicalidade deve ouvir "Omelete". Para depois curvar-se diante da sua magnitude e da sua genialidade.

J. D. Borges