Quem tem medo do Jô Soares?

José Eugênio Soares tem sido, desde a mais tenra idade, um prodígio. Genial apresentador, construiu para si uma imagem que se confunde com o ideal máximo de artista multi-mídia.

Leitor voraz, fluente em mais de seis línguas; ex-consorte de belas mulheres, íntimo de quem detém a fama e o poderio; protagonista e/ou espectador ativo dos episódios mais recentes da História cultural e política da Terrinha; pintor, escultor, teatrólogo, humorista; músico, cineasta e jornalista. Enfim, homem de palco par excellence; unanimidade em todos os segmentos, classes e sentidos; unanimidade entre aqueles que mandam e desamandam, fazem e desfazem neste país.

Isso, contudo, não lhe basta para escrever bons livros.

Literatura não é arte para exibicionistas. É profissão de meticulosos, de pacienciosos, de especialistas (não de aventureiros que se lançam sobre ela depois de "maduros", como se escrever fosse apenas mais um ofício). Escrita requer prática, maturação e convívio (não de cinco ou dez anos, mas de toda uma vida). Literatura não se começa, literatura não se termina. Literatura não é questão de escolha, é questão de ser escolhido.

De qualquer forma, é compreensível a necessidade — que muitos ultimamente vem sentindo — de se fazer registro por meio da palavra escrita.

Incompreensível, no entanto, é toda a bajulação e todo o circo que se arma em torno de obras que estão longe de merecer tanto elogio e tanto rebuliço.

Afinal, "O Homem que Matou Getúlio Vargas", de Jô Soares, não passa de um romance de principiante, que, de notável, carrega apenas a tão conhecida tendência, de seu autor, à megalomania. Como se explica então a intenção de reunir, em um único volume, algumas das passagens mais conturbadas do século XX, ressuscitando, ao mesmo tempo, personalidades complexíssimas? Desde o arquiduque Francisco Ferdinando e a eclosão da Primeira Guerra Mundial, até Getúlio Vargas e seu longo governo, passando pelo gangsterismo de Al Capone, pela espionagem de Mata-Hari, pelo esoterismo de Fernando Pessoa, pelas tertúlias de Picasso e seu grupo de Montmartre, pelas traquinagens de José do Patrocínio Filho, pela prisão de Graciliano Ramos, pelas produções da Metro Golden Mayer, dentre otras cositas más?

Nenhum escritor sério se prestaria a isso. (Coisa que até um mero leitor de best-sellers pode aferir.)

O fato é que o inflado Jô jamais se contentaria em escrever um romance comum, sobre pessoas comuns, em paisagens comuns vivendo vidas comuníssimas. Tinha de juntar situações ímpares, tinha de unir personalidades especialíssimas, esbanjando erudição, rearanjando a História, redefinindo realidades, modificando destinos — como nem o próprio Deus ambicionaria.

O resultado, todavia, está bem aquém disso. O resultado é um angu-de-caroço sem tamanho — que quando não causa engulhos, desperta a benevolência e a comiseração do leitor para com a ingenuidade de seu artífice.

O resultado é uma salada de estilos (novela, policial, romance, épico, comédia, carta, diário, reportagem, poesia) e de recursos gráficos (cores, letras, fotos, quadros, indicações, manipulações, falsificações, terminações, capas, setinhas) que tentam, sem sucesso, encobrir a falta de assunto e de propósito da personagem principal, Dimitri Borja Korozec, e, em última instância, do livro.

O resultado é uma narrativa que se propõe acessível, mas que, no fundo, se presta apenas à divulgação de seu criador e de sua ostentatória sabedoria. Se assim não fosse para quê utilizar-se, por exemplo, de vocábulos tão rebuscados quanto "pascácio", "aziaga", "empáfia", "macérrimo", "algaravia", "aleivosia", "pressurosa", "passadiço", "torvelinho", "través", "sabujo", "vendilhões", "alijado", "puídos", "preamar", "singram", "estouvado", "coleando" e "altercação", numa obra que se supõe de entretenimento, e não de etimologia?

O resultado são construções tão antalógicas quanto as seguintes: "Sou lotado na delegacia, era melhor usar alguém da rua" (pág. 91), "Os soldados passaram a exercer uma vida subterrânea" (pág. 130), "Erguia os punhos para a esmagar" (pág. 138), "Tem uma campanha pela frente com que se preocupar" (pág. 150). Ou trechos tão confusos quanto este: "Domingo, tarde da noite, em volta de uma das mesas, tacos de snooker na mão, três irmãos gaúchos, filhos de um influente general do Rio Grande, começam uma discussão tola com um aluno mineiro. Outro estudante, este paulista, também da faculdade, vendo o colega de Minas inferiorizado, entra na briga para defendê-lo. Atinge especialmente o mais jovem, um menino pequeno e franzino, aluno do curso de Humanidades, preparatório indispensável para mais tarde ingressar na faculdade. O garoto, ainda imberbe, acaba sendo espancado de forma brutal. Finalmente os demais freqüentadores conseguem apartar os rapazes, porém o mal já está feito. Ao sair trôpego do Bilhar, amparado por seus dois irmãos, ele jura vingança." (pág. 13)

O resultado é uma colagem enciclopédica e esdrúxula, em que nem a idéia central chega a ser uma novidade propriamente dita — dado que Dimitri Borja Korozec não é o primeiro homem-errado no lugar-certo e na hora-certa. (Vide Forest Gump, de Robert Zemeckis.)

O resultado é a soma desconjuntada das obsessões pessoais do autor e dos envolvidos. (Vide "Agosto", de Rubem Fonseca e "Olga", de Fernando Morais; não à toa citados na bibliografia.)

O resultado final é nada mais que isso.

O fato é que a Imprensa, a Crítica e a Classe Artística tremem diante do apresentador do "Jô Onze e Trinta". Sabem que, do alto de sua poltrona, ele decide pela consagração ou pelo aniquilamento daqueles que ao seu lado sentam (a fim de conceder-lhe uma inocente entrevista). Sabem que ele profere veredictos fatais e definitivos (que podem abreviar a carreira mais promissora, mais brilhante, mais digna).

Assim, sobre o frankenstein literário de José Eugênio Soares, ninguém dá um pio. Assim se comportam aqueles que, no Brasil, se gabam de sua independência, de sua imparcialidade e de seu destemor.

Todos eles pífios.

J. D. Borges