Amós Oz e a lógica da traição

Pois a essência da traição não consiste em o traidor levantar de repente e deixar o fechado círculo dos devotos e fiéis. Só o traidor superficial faz isso. O traidor real, profundo, é aquele que está bem lá dentro. Dentro do coração do coração: aquele que mais se parece e mais pertence, o que está mais envolvido. Aquele que é mais como os outros, até mais ainda do que os outros. Aquele que realmente ama àqueles que trai, pois se não amar, como vai trair?

Quem é o inimigo? É aquele que veste a fantasia, mas que não ameaça, e até mesmo se aproxima? Ou aquele que anda imiscuído nas tuas atividades, trabalhando inconsciente e incansavelmente, dia a dia, pra te derrubar? O inimigo suposto e aparente pode te ensinar coisas e trocar contigo confissões? E o amigo considerado? Pode te preservar apenas pelo gosto da dominação e de um suave vampirismo?

Amós Oz tenta responder essas questões, ou ao menos sugeri-las, em “Pantera no Porão” — uma narrativa autobiográfica, da época da ocupação britânica em Israel. Chega a extratos bastante válidos, muito embora abuse da repetição e dos episódios que giram em círculos no livro. Justifica, no entanto, a ênfase e as retomadas, brilhantemente.

Contar antecipando e, depois, voltando ao ponto de partida. Acredita Oz, que as obsessões, de cada um, lhe serão eternas e incuráveis. Como bumerangues dos quais queremos nos livrar, mas que sempre retornam. Uma paixão ou trauma da infância, portanto, pode te reaparecer em sonho, ou futuramente refletido em novos objetos; ou ainda como o seu arrependimento predileto, que te cerca nas horas escuras e silenciosas.

Ciente da inevitabilidade que nos traz às origens, Amós Oz reconstitui sua pré-adolescência, em que foi acusado de alta traição, pelos amigos, — apenas porque conviveu e tomou aulas de inglês com o inimigo. É bem provável que todo o escritor escreva para justificar-se. Surpreende, porém, que, quarenta anos depois, o autor ainda viva atormentado pelos múltiplos significados da palavra “traidor”.

Acaba concluindo, meio a contragosto, que aquela traição sua, fruto de involuntária simpatia pelo inimigo, não resulta em infâmia ou condenação amplas — mas sim em descobertas reveladoras acerca do caráter de seus amigos, de seus familiares e da mulher que inocentemente desejava. Um usara-o para matar sua sede de poder, outro para liberar seus instintos repressivos, a última para escarnecer-lhe o voyeurismo, humilhando-o com amantes. Trocam de posição, assim, vítima e algoz — pessoas próximas e Amós Oz.

Fica evidenciado que o infringir de certas normas socialmente instauradas não implica, necessariamente, em infidelidade à comunidade. Muito mais grave é a falta interpessoal, aquela que desrespeita códigos tácitos e não escritos de convivência moral. É nessa hora que Oz se perdoa e, exorcizando aqueles tempos, dorme tranqüilo.

Tranqüilo em termos. Diz-se, uma porção de vezes, envergonhado e como que relutando, quase omite certas passagens. É quando entra a força de coerção das tradições, das nações e das circunstâncias. É quando ele se submete ao juízo de quem o cerca e aceita o labéu sem questionar, embora no íntimo se perdoe.

Contradição patente, é verdade. Resumindo, a impressão que se tem de raças secularmente coesas como a judaica é que, por mais que você se diga desgarrado e até rebelde no rebanho (como o jovem Oz), você sempre torna à casa, engolindo em seco o castigo, abaixando a cabeça para as normas — como um “reacionário de última instância” que, às vezes, desfila de “progressista limonada”.

“Até o final desta semana você não vai sair do seu quarto, exceto para ir ao banheiro. Isso inclui fazer as refeições sozinho no quarto. Assim você vai ter bastante tempo livre para refletir honestamente sobre o que aconteceu, e também sobre o que poderia ter acontecido. Além disso, Sua Alteza terá que enfrentar um baque financeiro, pois sua mesada está congelada até 1º de setembro. Também o aquário e o passeio a Talpiot estão definitivamente excluídos do programa. Espere. Ainda não acabamos. Esta semana a hora de apagar a luz vai ser antecipada, das dez e quinze para as nove... Já foi comprovado que, decididamente, no escuro o homem racional faz um exame de consciência muito mais preciso do que com a luz acesa. É só isso. Sua Excelência queira, por gentileza, retirar-se ao seu quarto neste instante. Sim. Sem jantar.”

Difícil de concordar, não? Principalmente se você for um brasileiro que nunca ouviu falar de laços e de princípios transmitidos de pai para filho, geração a geração, sem que a corrente seja quebrada, sem que um passo seja dado em falso. É o individual sacrificado em prol do coletivo, é a adaptação do particular ao geral. Muito antes de Marx.

Talvez uma bela lição que essa gente reserva para nós. Ainda que a tentativa de escravizar grandes personalidades a uma causa única seja ato de eficiência e de utilidade duvidosas.

J. D. Borges