Admirável Mundo Tolo
A busca de um ideal. Desde os mais remotos filósofos até a mais moderna Ciência, a História da Humanidade pode ser contada como a história da busca de um ideal. Perfeito ou não, isso varia conforme a hora, o lugar e o caso. Desde Platão e sua República até Nietzsche e seu super-homem; desde Rousseau e seu bon sauvage até Hitler e seu sonho ariano; desde o Terror da Revolução de liberdade, igualdade e fraternidade até a mais avançada Genética e seu projeto Genoma. Sir Isaiah Berlin, no princípio de seu The Proper Study of Mankind, discute a validade e a falibilidade dessa busca apaixonada. “Busca pelo prazer da busca, não pelo prazer de encontrar”, sentenciou sabiamente J. L. Borges (talvez prevendo a secular ditadura dos idiotas da objetividade). O Ideal, portanto, deve ser tomado como algo para se especular, para se esquadrinhar, algo para deleitar as grandes imaginações dos grandes homens que por aqui passaram. Ao Ideal não se chega nunca, nem se quer chegar. É uma abstração, um referencial, uma base — nunca um esquema aplicável, um plano indefectível, uma realidade que se possa vivenciar ou palpar. O Ideal, portanto, não deve existir de fato. É criação, é ficção, é refúgio. Assim, qualquer tentativa de construir uma ponte milagrosa até um “ideal de mundo” está fadada à frustração e ao fracasso. Logo de cara. Mesmo assim, talvez sem saber, muitos os que atualmente insistem num “ideal de humanidade”, propondo cruzamentos estapafúrdios entre homens e mulheres ideais, seja pela inteligência, seja pela beleza, propondo safras de seres humanos mais bem acabados, mais aptos — imunes a certas limitações da ascendência, livres de certos defeitos de fábrica. Talvez, para esses entusiasmados, seja necessário redefinir “beleza” e “inteligência”, evitando que, num futuro, tropecemos em hordas de cérebros poderosos e em multidões de divindades gregais. Inteligência não é um dom estático, não é uma varinha mágica, não é uma distinção miraculosa que, por si só, abre portas e faz nascer oportunidades extraordinárias. Inteligência é a capacidade potencial de realizar obras — somada à realização própria dessa mesma potencialidade. Isto é, o “inteligente” só pode ser classificado como tal se tiver atrás de si um histórico de realizações importantes e fecundas — e não simplesmente um futuro de coisas por fazer, por materializar. É falsa, portanto, a noção de inteligência como promessa, como predição, como presságio — pois ninguém garante que o menino prodígio de hoje será o homem de ação de amanhã; pode simplesmente florir, sem frutificar jamais. Logo, a produção contemporânea de bebês com QI, QE ou sei-lá-o-quê elevado é uma falácia estrondosa, em termos de conquistas e de glórias. A Química, a Biologia e a Física não garantem que embriões geniais encontrem ambiente propício, sustentação emocional, inclinação pessoal e momento histórico para eclodir em capelas sistinas, em giocondas, em leis da gravitação universal ou em teoremas de pitágoras. Além do mais, inteligência é diferenciação e diversidade: um exército de gente sobrecapacitada, com a mesma programação de DNA, redundaria em mediania, em meio-termo, em mediocridade — subvertendo a escala. Do mesmo modo, a beleza. Dentre o que compõe o belo, está o raro; o comum logo tende ao banal, e o banal fica para trás na seleção natural de Darwin. Posto isto, uma multidão de “alain-delons” ou de “marilyn-monroes” uniformizados só faria entediar o mercado de faces e de corpos sedutores, irresistíveis, desejáveis. Além do mais, nunca que um tipo físico, por si só, garantirá sucesso social, matrimonial, amoroso. Pelo contrário: traços bem definidos e curvas bastante acentuadas trouxeram muita movimentação e muita confusão na vida de quem portou tais atributos e tais preferências; pouca estabilidade e pouco equilíbrio. (Os exemplos estão aí, para quem quiser comprovar.) Beleza é conjunto, por mais que se afirme a moda de bonecos e bonecas intumescidos e “pneumáticos” (no dizer de Almodóvar). Beleza é também alma, é espírito: no vestir, no andar, no falar, no sentar, no sentir, no expressar. Claro que embrutecidos e insensatos afirmarão a primazia da massa muscular, lipídica, epidérmica sobre o porte, o gestual, a allure que emana de figuras tarimbadas e aclamadas como “bonitas” ao redor do globo. Quem aposta apenas em fina estampa, joga todas as suas fichas no que há de menos durável e de mais perecível no ser humano. O que fica, no fim, é o estilo — o mesmo que não pode ser ensinado, o mesmo que não passa de pai para filho, o mesmo que não vai acoplado em cromossomos X ou Y. A usinagem de hominídeos brilhantes e formosos que hoje em dia se ensaia é, enfim, resultado de simplificações conceituais e da ilusão cada vez mais perigosa de que perfeição e felicidade estão à venda, ao alcance da mão ou do bolso de quem quiser comprar. O que existe de verdadeiramente valioso nas pessoas, na vida e no mundo, continuará como bem raro, custoso, difícil de alcançar. Pois como disse Roberto Campos, Deus não é socialista e não fez os homens todos iguais — por mais que neguemos esta evidência e por mais que tentemos atenuá-la, forjando embriões melhorados a partir de sementes selecionadas de nós mesmos. Sempre haverá escolhidos. Contra isso, é
tolice lutar. |