Pedro Cardoso e a Ignorância Esclarecida
É pena que a maior parte das pessoas tenha trocado o comodismo dos insípidos e estupidificantes episódios da tele-dramaturgia (dita moderna) pela insubstituível experiência do teatro (aliás, antiqüérrimo). Experiência essa, do contato direto, quente e vivo com os artistas, com as obras, com o público. Com a cidade, com o entorno, com as iniciativas que, de fato, alimentam o espírito (tão abandonado nesta era de primazia da physis). Em verdade, não espanta nem um pouco. Num mundo em que o natural deu lugar ao artificial, não sobra tempo para esse tipo de contemplação despretensiosa. Consagraram-se, isso sim, as facilidades rápidas, o gosto pelo que estiver ao alcance do controle remoto. Num mundo em que brevíssimos translados automobilísticos substituem a docilidade, a calmaria e a riqueza da uma promenade; num mundo em que a urgência de chegar substitui o olhar cuidadoso, desapressado, o andar vagaroso e desinteressado; num mundo em que as mensagens, as gravações e os recados substituem as conversas, os encontros, as palavras e o calor de uma amizade. Num mundo como esse, quem é extravagante o suficiente para, ainda assim, acreditar na magia milenar do teatro? As pessoas querem abundância. De formas, de sabores, de tamanhos. As pessoas querem agora; ou a qualquer hora. As pessoas querem aqui; sem sair; sem ter de se levantar da cama ou do sofá. E as pessoas querem satisfação garantida; felicidade a vista; resultados sem dedicação; plenitude celestial. Se possível, todo santo dia. E quem, senão a televisão (em conluio com a publicidade), pode vender ilusões desse tipo? Complementarmente, vive-se entre uma pronunciada opressão e um maldisfarçado escravismo. Estão todos sufocados pelas novas tecnologias que, ao invés de diminuir, aumentaram o trabalho, a dependência, os erros e o estresse dos indivíduos. Estão todos ganhando tempo que só fazem perder. Estão todos burocratizando a vida, que de tão simplificada, transformou-se num emaranhado caótico de horários, de aparatos, de compromissos, de ineficiência acumulada e de neuroses garantidas. Qual a única saída para tudo isso? Explodir. É o que fazem os múltiplos personagens deste brilhante cômico e tremendo ator que é Pedro Cardoso (nas horas vagas, primo de Fernando Henrique). Ele está na peça, Os Ignorantes, que infelizmente encerra sua última semana na capital paulista. Tomando como inspiração, e cenário, o Rio e seus malandros cada vez mais tensos e abrasivos, Pedro Cardoso escreveu e montou umas tantas situações em que o destaque são as pessoas e sua tragicômica trajetória de vida. Num monólogo musicado, encarna um menino da favela (1), um jovem soldado (2), um atleta de luta livre (3), um evangélico atraiçoado (4), uma cantora inconseqüente (5), um dono de fábrica (6) e o que de mais relevante houver em torno desse pessoalzinho. Não recai em estereótipos. Destila uma análise fina e atualíssima sobre os seres que povoam esses aglomerados de urbanidade mal-ajambrada que são as metrópoles do Brasil. Divide conosco observações muito próprias e muito argutas sobre o modus vivendi dos concidadãos, das partes, dos litigantes --- em seus desencontros, desentendimentos e conflitos. Abusa, inclusive, dos palavrões e da histeria --- que por ser catártica, alivia e relaxa os ouvintes. Politicamente incorretíssimo, Pedro Cardoso assusta pelo absurdo, pela violência --- que quando não se materializa, permanece na iminência, no limite. A platéia se diverte, quando deveria, também, enxergar suas mazelas, no palco, refletidas. Afinal de contas, nosso país é esse bolsão ensandecido, em que moleques de doze anos se divertem com armas roubadas; com o desrespeito aos menos favorecidos, aos mais velhos e aos animais; com o culto à fraude na escola e ao vandalismo (1). Bolsão em que os machos mantenedores da ordem e da soberania têm a sexualidade e a integridade física ameaçadas por preconceitos que não conseguem explicar nem para si (2). Bolsão em que os sectários do corpo e da "natureba" são os primeiros a agredir o próximo, a natureza e os deficientes de qualquer tipo (3). Bolsão em que os condenados à exploração, pelos mais diversos agentes, só encontram a paz na evangelização cega e no fanatismo que a tudo demonifica (4). Bolsão em que as paixões governam, os vícios imperam, e terceiros pagam o mico (5). Bolsões em que a ganância centenária atropela o respeito humano; pisoteando quem estiver no caminho (6). Claro que nem só de visões apocalípticas vive o hominídeo. De vez em quando, no entanto, vai bem um choque como esse, de realismo. Para os pessimistas serve como revisão, como readequação de suas crenças cinzentas, de seus prognósticos infalíveis. Para os otimistas serve como um salutar balde de água fria --- provando que não adianta se atocaiar num castelo de Cinderella, enquanto o mundo lá fora arde em desespero e guerrilha. Que Pedro Cardoso leve seu espetáculo até as mais longínquas paragens. Quem sabe, mostrando uma nação doentia, produza resultados --- e não só riso. Um brinde à ignorância esclarecida. |