Se o amor da sua vida fosse J. D. Salinger

Comparativamente, muito pouco se especula sobre o Amor. Preferem, os humanos, entregar-se aos desígnios do cupido, sem muito titubeio ou ponderação. Na nossa sociedade, fria e cortante, o interesse verdadeiro e descompromissado (pelo outro e do outro por nós) se manifesta em ocasiões tão raras e tão inéditas que já chega acompanhado de certezas e de comemoração — nunca de prudência ou lucidez. (Ceticismo? Só se for de fachada. Não dura muito.)

Uma maioria considera a discussão sobre o Amor uma perda de tempo. Pertence ao terreno do irracional, costuma-se alegar. De fato, para os que vivem sob o signo da paixão, um beijo explicado perde completamente a graça. Outros, porém, reduzem todo um destino amoroso à dinâmica das reações químicas e das enzimas que nos encaminham para esse ou para aquele estado. Parece não haver diálogo, nem ponto de contato, entre as duas vertentes. De um lado, os amantes das Ciências Naturais (que não morrem de amores pela metafísica, nem pela espiritualidade), de outro, os entusiastas de Dioniso (sempre desdenhando de Apolo e de seu séquito de racionalistas, metodistas, cartesianos). A quem recorrer, então, quando sôfregos ou quando em meio a desnorteantes palpitações? Ao saber hoje contestado e démodé dos psicólogos, psicanalistas e psiquiatras?

Que tal aventurar-se pelo terreno inócuo das rememorações e das vivências emprestadas? Que tal penetrar em episódios análogos (aos nossos), em romances de outrem — para melhor compreender e domar o Amor e suas periculosas peculiaridades?

Para esses e outros estudiosos do subject, Joyce Maynard escreveu At home in the world (ou, na tendenciosa versão brasileira, "Abandonada no Campo de Centeio"), livro em que a autora discorre sobre sua formação e sua evolução emocional, desde a relação com os pais até a relação com os filhos, passando obviamente pelo envolvimento amoroso, tempestuoso e divisório com J. D. Salinger (há décadas, um foragido do mundo; autor de "O Apanhador no Campo de Centeio", dentre outras obras).

Ao contrário do que a princípio se supõe ou se anuncia, a narrativa e as ruminações da escritora não se concentram na personalidade singular de Jerry Salinger, na sua misantropia ou na sua bizarrice. Como convém a uma mulher que se fez sábia, Joyce não recai em julgamentos ou culpas, preferindo vôos mais altos — em que não cabem concessões a personalidades, nem à avidez dos alcoviteiros de agora, ou mesmo a rancores pessoais justificáveis. Dá ao celebrado escritor, não a dimensão de um deus pagão, idolatrado e intocável, mas sim o posto que ele ocupou, ocupa e ocupará sempre: dá-lhe a distinção de ter sido, para além das convenções, o amor de sua vida.

E o que significa, para Joyce Maynard, ter tido J. D. Salinger como o amor de sua vida? Significa ter abreviado uma promissora carreira de jornalista no New York Times; significa ter um curso em Yale e uma vivência universitária descontinuados; significa ter o trauma da rejeição convertido num trauma sexual; significa ter suas esperanças e suas ilusões românticas rompidas — e jamais retomadas. E significa também ter encontrado o que chamam de alma gêmea; significa ter desfrutado da atenção e do apoio (indelével) de um dos mais cultuados escribas contemporâneos; significa ter carregado um pouco da força e da honestidade de suas palavras; significa ter marcado esse homem como ferro em brasa, estando para sempre presente em seus pesadelos conscientes ou em seus atos involuntários.

Mas o que é viver o amor de uma vida inteira senão o viver contínuo de embates, deformações e retomadas? Amaramo-nos à nossa cara metade e com ela configuramos um outro centro de gravidade. Tendemos para esse novo centro, embora conservemos o nosso, oscilando entre ambos como se fôssemos uma bússola desorientada entre dois pólos. Assentamo-nos em uma destas três possibilidades: ou vivemos no vai-e-vem entre os dois centros, em constantes embates de personalidade; ou conformamos nossas preferências às do casal, sufocando, por vezes, nossa subjetividade; ou afastamo-nos de vez de quem nos estava destinado, condenando a alma a retomadas cíclicas, nostálgicas e infindáveis.

Joyce se encaixa patologicamente no terceiro caso. Ainda que casada, mãe, jornalista e escritora relativamente bem sucedida, retorna à casa — depois de vinte e cinco anos — para justamente indagar a Salinger: "Qual foi o meu propósito na sua vida?"

Responde, então, o próprio: "Essa pergunta. Essa pergunta, essa pergunta, essa pergunta é muito profunda. Você não merece uma resposta para ela."

No fim do livro, voltamos, portanto, ao nosso velho beco sem saída. Voltamos porque talvez o Amor não seja um problema, nem uma solução. Muito menos um objetivo ou uma meta. Voltamos porque, como a Vida, o Amor não faz sentido.

Ou faz?

J. D. Borges