Santa Rita de Sampa

Após brevíssima audição, em revendedora autorizada, adquiri o novo CD da eternamente venerável Rita Lee: Santa Rita de Sampa.

Em primeiro lugar, deve-se parabenizá-la pelo acabamento do disco: fino e de incontestável bom gosto. As fotos, em preto, branco e tons de rosa, estão belíssimas! O surrealismo de alguns takes produzem agradável contraste com a aparente sobriedade. Entretanto, o que salta à vista, no encarte, é o fato de Mrs. Lee e de Mr. Carvalho haverem bebido das águas da fonte da enterna juventude — são eles os verdadeiros homem e mulher vinho!

Em segundo lugar, lanço uma dúvida um tanto quanto impertinente: é mesmo o melhor baterista da atualidade que toca no CD? A princípio, pensei e encontrei (na batida e no pulso forte) o nosso respeitável Paulo Zinner. No entanto, quando bati o olho na relação de músicos por música, caí de costas! Ter Vinnie Collaiuta tocando é como ter Raphael Rabello, John Bonham, Ella Fitzgerald ou Eddie Van Halen. Só por isso, eleva-se o disco à categoria de incomparável (ao menos, em termos "baterísticos").

Mas Santa Rita de Sampa não é apenas mera composição de detalhes. É um todo: coeso e vibrante.

"Normal em Curitiba" é um clássico antes de sê-lo. Foi a música que mais ouvi e, ao acionar o CD, é aquela que mais aguardo (quando não vou diretamente a ela). Rita Lee é a nossa melhor compositora de rocks básicos e fortes. Não se vê nada parecido na sua geração, e nem nas seguintes. E quanto ao título? A que se refere? É certo afirmar que faz alusão aos eternos "anormais" curitibanos (leia-se Dalton Trevisan, Wilson Martins e Paulo Leminski)?

"O Que Você Quer" me fez lembrar de "Gente", de Raul Seixas; afinal "gente nasceu pra querer". Rita, no entanto, fez do querer algo mais bonito e mais elaborado. Raul compôs uma música menor, onde inseriu — apenas uma — de suas observações geniais. Rita Lee desdobrou a coisa e fê-la mais rica, visto que mostrou-a de várias maneiras: "Bêbado, você quer / Em perigo, você quer... No inferno, ainda quer... Velho, você continua querendo." Fora que a batida do violão faz do conjunto, letra e música, um convite ao irresistível; carrega aquele gosto de liberdade hippie, da histórica "Perto do Fogo".

A participação de Guinga em "Tum Tum" é um must. Madame Lee, sabiamente, escreveu versos que completam e que ressoam na música, sem ter de dizer necessariamente alguma coisa. Abriu espaço para o mestre e seu violão de veludo, ressaltando a melodia que é de uma doçura quase lúdica.

"Homem Vinho" é um poema; composto em uma de suas fases de maior inspiração: "Homem vinho / O tempo te lapida... Tua fina estampa / De Sampa o mais completo tradutor... Sangue de bamba / Pano pra manga... Carma de mestre / Cabra da peste... Leitmotiv como ninguém." Sem (ou por) querer, Rita fala também de si mesma.

"Santa Rita de Sampa" — a música — é a cara da autora; e não é. É como ver Villalobos e Pelé, falando de si mesmos na terceira pessoa do singular. Dos malucos sois, ó Rita, realmente, a beleza. Pelo que percebi, não participas do coro de admiradores da Paglia — interessante como fenômeno; nem tanto pelo que diz. "Desvairada da Paulicéia" (na letra) alude a Mário de Andrade, antecipando toda essa história de cartas reveladoras — que o trouxe de volta à ribalta. Já o instrumental, entre pesado e baladeiro, segue em equilíbrio — harmonioso, e inatingível para os não veteranos do Rock.

"Fruta Madura" canta o amor soberano, que a tudo supera e que para o além atravessa. É a lição dos Lee de Carvalho em tão difícil matéria: relacionamento humano. Tem também o seu quê de clássico ritalístico; bem ao estilo do memorável álbum "Lança Perfume".

"Obrigado Não" é a voz da experiência falando; é a reflexão sobre o que foi e o que será do/no Brasil. E é, por que não dizer, uma tremenda de uma festa. Energia bruta, sinceridade mordaz.

"Longe Daqui, Aqui Mesmo" traz o frescor dos dias de sol e de céu azulzinho. Tem em si a leveza e o colorido das coisas naturais; faz apologia à insuperável interação homem/natureza, muito antes da tecnologia, do urbanismo, da modernidade e da artificialidade — e muito depois também. A percursão e o "autoharp" dão-lhe o tom e o brilho. Parece ser, de algum modo, aparentada de "Pega Rapaz".

"Ando Jururu" é, da mesma maneira que "Homem Vinho", uma homenagem ao contrário: a homenageada de outrora rende homenagem àqueles que a homenagearam naquele então. Assim como "Homem Vinho" se refere a Caetano, que se refere a Rita em "Sampa", "Ando Jururu" remete ao rock dos Raimundos, que remete à rebeldia explosiva e descabida dos legendários Mutantes. A letra prega a simplicidade despojada, punk — que aposta no lema do it yourself, e não em background ou know-how. Existe algo mais verdadeiro, no cerne do Rock’n’roll, do que "shoobeedodaudau"?

"Jardim de Allah" é mais um jogo de palavras do que uma música, convencionalmente falando. Volta a impagável Rita de "Se o rosto da Elisabeth Arden, o que é que a Helena Rubenstein a ver com isso?" Descubra por si só o duplo sentido (às vezes não tão evidente) de: "Dízimo com quem andas / E eu te direi quem és", "A César o que é de Deus / Adeus mundo cruel", "Mata Hare Krishma espionando / Testemunhas de Yemanjá", "Haja Guerra Santa para tanta paz" e por aí vai... E o refrão? Alude à castradora Bobbit? ("Dalila cortou os cabelos do pau de Sansão.")

De "Dona Doida" é difícil separar o caráter televisivo, global, até porque Dona Rita flertou (e continua flertando) com o gênero melhor do que ninguém. Seus temas de novela, à diferença do que geralmente acontece, não se esgotam com o fim da trama. Permanecem atuais, modernos. O embalo circense e a mneumônica de "sete e sete são cartoze, com mais sete vinte e um" estão impregnados de infância e dos tempos de colégio.

"Menino de Braçanã" começa e segue com a habílissima levada de Roberto de Carvalho. Reside aí a inventividade da dupla: Roberto dosa as cordas de acordo com a necessidade de Rita, e Rita, por sua vez, espalha a voz conforme lhe permite a viola de Roberto. É inegável o clima de adeus, que permeia a canção "É tarde, já vou indo... Se eu demoro, mamãezinha tá a me esperar..." A isto sobrepõe-se a imagem da moça ingênua (nostalgia de Rita, que nunca o foi e) que, partindo, diz: "Tá doido moço, num faço isso não... ando com Jesus Cristo no meu coração."

Quem carrega consigo tais doses de fertilidade e de vitalidade não teme mesmo a escuridão.

Bendita Rita, um brinde à vossa luz!

J. D. Borges