Deus e o Diabo na terra do Banco Central

Deveras ilustrativo o episódio das sucessivas sucessões de presidentes do Banco Central. Principiando pela substituição de Gustavo Franco por Francisco Lopes, em 13 de janeiro; derrapando na sexta-feira negra, 29 de janeiro, em que, liberado, o dólar saltou para 2,17 reais; e findando com a convocação sigilosa, já em 3 de fevereiro, de Armínio Fraga — o inconciliável emissário do Mercado.

O velocíssimo entra-e-sai governamental, trouxe à tona as ambivalências, as oposições e os radicalismos que a política e a mídia adoram alimentar.

(A seguir, exemplos do uso tendencioso e propagado dos contrários.)

Exemplo 1: Gustavo Franco — monetarista, desfavorável à variação do dólar, defensor ferrenho da sobrevalorização do Real, ás das intervenções do BC no Mercado, enfant terrible da Economia da PUC do RJ —, foi substituído por Francisco Lopes — desenvolvimentista, favorável à desvalorização progressiva do Real, inerte e/ou ausente durante os dois maiores ataques à moeda nacional, emérito fundador da cadeira de Economia da PUC do Rio (professor e possível opositor do supracitado Gustavo).

Exemplo 2: Francisco Lopes — acadêmico consagrado no Brasil, contrário à intervenção dos "burocratas" do FMI, pífio operador da mesa de câmbio do Banco Central, um dos pais do Real —, foi substituído por Armínio Fraga — acadêmico respeitado nos EUA, favorável às diretrizes de Stanley Fischer (segundo homem do Fundo Monetário Internacional), exímio operador e administrador dos mais diversos funds, ex-parceiro do megagalático especulador e saqueador George Soros.

Olhando assim, por cima, saltam aos olhos duas proposições básicas. Proposição 1 (decorrente do exemplo 1): Francisco Lopes é uma espécie de anti-Gustavo Franco. Proposição 2 (decorrente do exemplo 2): Armínio Fraga é uma espécie de anti-Francisco Lopes. Extrapolando um pouco (mas não muito) a lógica, vem a conclusão: Gustavo Franco é um quase Armínio Fraga. (E vice-versa, claro.)

Exemplo 3: Itamar Franco, presidente do Brasil. Lança e projeta continentalmente o nome de Fernando Henrique Cardoso, seu ministro da Fazenda, graças à bem-sucedida empreitada do Real — primeira moeda efetivamente forte (ainda que por decreto) da nossa História. Itamar Franco, governador de Minas Gerais. Rebelde, insensato e aparvalhado articulador de uma oposição oportunista e feroz à figura do mesmo Fernando Henrique Cardoso, instaura a moratória em seu estado. Desequilibrando as finanças públicas e as bolsas de valores, arruina a credibilidade do país e das Minas Gerais.

Algumas explicações prováveis para o descompasso entre FHC e Itamar. Explicação 1: o nefasto e alheado Fernando Henrique de agora não é mais o célebre e milagreiro Fernando Henrique de outrora. Explicação 2: o Itamar Franco de ontem sofreu mutações variadas e irreversíveis, de tal sorte que se transformou no abobalhado, herético, e nauseabundo Itamar Franco de agora. Explicação 3: tanto Fernando Henrique quanto Itamar Franco não mudaram em nada, estão é blefando; já, o Mundo, virou de pernas pro ar; estamos todos loucos e condenados; que venha então o Juízo Final.

Esse é o quadro que os jornais, as rádios, as televisões, os semanários e o próprio Governo têm o prazer de pintar. Então, das duas, duas: ou os periódicos desejam iludir as massas, criando uma falsa batalha entre as forças do Bem e do Mal (transitando as personagens em ambos os lados, dependendo da conjuntura e da posição ocupada); ou os homens dos três poderes vivem um auge de insegurança, de volubilidade e de incoerência, castigando impiedosamente seus eleitores — ao imprimir-lhes emoções e oscilações ineditamente danosas, como se o bolso e a integridade física do contribuinte clamassem por novas rodadas de medidas e pacotaços catastróficos.

Não se sabe se vítimas ou se artífices deste estado de coisas, inúmeros os que se meteram a dar declarações desvairadas, engrossando o coro dos insensatos. Vide, mormente, o que se diz sobre a recente contratação do mencionado Armínio Fraga: "É o mesmo que a Polícia Federal fazer um acordo com os contraventores", "O Armínio é uma pessoa abençoada. Nós estamos entrando em mares turbulentos e agora temos um capitão", "Va lá que seja um grande operador e conheça tudo sobre o bazar global das finanças, mas, até dois dias atrás, ele não jogava do outro lado, ou seja, contra a gente?", "Uma pessoa maravilhosa, inteligente, agradável. Sorri o tempo todo. É boa companhia, bom papo, tem experiência nos mercados,... O que seria melhor do que isso?", "Basta de intermediários, vamos logo colocar a raposa para tomar conta do galinheiro", "Ele é o máximo. Ele era sempre o melhor aluno", "Acho a nomeação de Fraga um absurdo, mas pode até funcionar".

Seria piada, se não fosse realidade.

Existe cura, é claro, para esse tipo de espetáculo. Ainda no embalo das declarações, talvez devessemos seguir uma única voz perdida no meio de tantas bravatas irresponsáveis: "Uma coisa ruim sobre essa crise financeira é que ela empurra outros assuntos mais relevantes para fora da discussão. Vocês têm uma larga parcela da sua população sem nenhuma escolaridade. Se você não produzir uma sociedade escolarizada, você não está sequer se aproximando da sociedade global. Sempre que vou ao Brasil, o que acontece quase todo ano, digo a mesma coisa: esqueçam isso de estabilizar a moeda, é a prioriedade errada. A coisa mais importante é ter uma boa escola em cada vila". Falou Lester Thurow.

Dá-se por encerrada a meditação.

J. D. Borges