A vida é bela ma non troppo

Roberto Benigni. Tanto se falou e tanto se escreveu ultimamente sobre esse homem e seu mais recente trabalho. Nada, no entanto, resume tão bem todo o palavrório a respeito quanto a adaptação de uma frase de Paulo Francis (originalmente acerca de um livro de Philip Roth): "'A vida é bela', de Roberto Benigni, é um Gulliver na cinematografia liliputiana dos nossos dias."

Afinal, a película não chega a ser nenhuma obra-prima, e seu realizador, nenhum gênio. Mas tal é a miopia do cinema e dos cinéfilos atuais que ambos são aclamados como se, de fato, fossem capo lavoro e uomo di pensiero de 1998-99.

Inúmeros os que comparam Benigni a Chaplin. Erram feio o alvo (influenciados talvez pela docilidade ingênua e inventiva com que Guido investe na conquista de sua principessa Dora). A fonte da qual Roberto bebe descaradamente chama-se Toto. Reparem nos trejeitos, no crispar, na boca, nos olhares e, principalmente, no falar. Assista-se a qualquer comédia do mestre do humor italiano e constate-se que todos os truques estão lá; ninguém pode negá-lo. Pastiche, paródia ou plágio? (De mais a mais, Benigni já havia "clonado", com relativo sucesso, o Inspetor Clouseau, de Peter Sellers, em 1993, como "O Filho da Pantera Cor-de-Rosa".)

Claro que, em "A vida é bela", existem situações cômicas eximiamente bem boladas e bem resolvidas; afora os diálogos notadamente engenhosos e hábeis, que evocam o brilhantismo inimitável dos irmãos Marx. Mas, novamente, sombras, reflexos e ecos — nada suficientemente autônomo, pleno, vigoroso, original. Afinal de contas, esgotaram-se há muito tempo as anedotas em torno de garçons, cadeiras, mesas, bicicletas, malabarismos, grandalhões e baixinhos, comidas, corre-corre e salas de aula. (Será que as graças não evoluíram? Será que a vida moderna não proporciona novos episódios autenticamente hilários?)

A ousadia e o ineditismo concentram-se, portanto, no roteiro e na abordagem ímpares da questão dos campos de concentração nazistas. Fazer piada com o Holocausto é, positivamente, uma idéia luminar — daquelas que, se não abandonadas a tempo, podem prejudicar toda uma obra.

(Acontece com freqüência. Tem-se um estalo de Vieira e, no afã de querer utilizá-lo de alguma forma, sacrifica-se, no fim, todo um trabalho. Em outras palavras: na tentativa vã de adequar tudo o que se fez a uma prepotente centelha de gênio, põe-se abaixo edifícios inteiros de criação, suor e vontade. Nesse campo, é preciso ter cuidado; um poderoso insight pode implicar em alentadas calamidades. "Seja burro", aconselhava o Nélson, tempos atrás.)

Fica evidente, no caso do filme, o "momento mágico" em que a idéia luminar se instala e toma conta do todo, subvertendo-o aos seus desígnios (nem sempre louváveis). A detecção do "baque" não requer muita atenção, nem sensibilidade. Qualquer um sente, da metade em diante, as mudanças brutais de clima, ritmo, cores, aura, cenários, atores; resultando em consternação, desalento, poeira, aridez, guerra e fantasmas. Como se endurecesse, escurecesse, amargasse, vilipendiasse o que "A vida é bela" tem de mais vital: sua humanidade.

A descontinuidade se faz de maneira tão brusca que o público, ainda na inércia do riso da primeira hora, de repente, se vê troçando de alguns dos episódios mais abjetos da nossa História. (O que é uma das maiores ironias desde que se confirmaram os barbarismos praticados durante a Segunda Guerra Mundial.)

Cabe, approposito, a indagação: obteria Benigni as mesmas premiações, publicidade e glória caso não tratasse do anti-semitismo e sim, por exemplo, dos massacres ocorridos na URSS de Stalin (que mataram, no total, dez vezes mais)? Existem outros tabus, ainda intocados, por quê insistir em repisar as unanimidades tradicionais?

Fica então, para os movies das próximas safras, o desafio de emplacar um estouro de bilheteria que não se apóie em recursos de apelo fácil, tais como: nazismo, criancinhas, ETs, futurologia barata, perseguições de automóvel, explosões e efeitos especiais, sexo explícito light, repetitivas historietas água-com-açúcar, nacionalismo à americana, tribunais, advogados e júris, bares e jactância juvenil, delegacias, cadeias e mortes as mais variadas. (Será possível almejar que a representação da nossa realidade não se resuma a essas mesmas banalidades?)

No mais, "A vida é bela" preenche com louvor as tais duas horas. A crítica há de reconhecer a sua boniteza e o seu acabamento requintado. E as platéias hão de render-lhe os merecidos lucros milionários. Oxalá sirva para libertar Roberto Benigni dos lobbies, do aplauso e das trivialidades. Oxalá sirva para reerguer a cinemateca italiana, nowadays, tão menosprezada, olvidada, em baixa.

Oxalá descubramos como a vida e a arte podem ser belas de verdade.

J. D. Borges