Bolsas Sem Valores, Vidas Sem Sentido

Dada a impotência do presidente, dos ministros, dos governadores, dos congressistas e da equipe econômica, ante a desvalorização do real, e dada a inclemência das bolsas, dos investidores e especuladores, que fulminaram nossos principais índices, divisas, dívidas e reservas, é chegada a hora de sondar a densidade desses fatos e de estudar a implicância dessa lógica nos atos nossos de cada dia.

Quando no Japão do século XVIII foram selados os primeiros "contratos de futuro", pensava-se simples e apenasmente na antecipação de um pagamento, por conta de uma mercadoria que seria entregue numa data pré-fixada. Com o estabelecimento e a consagração dessa prática, veio a percepção de que tal "adiantamento contratual" permitiria maior agilidade na geração e no uso de recursos, possibilitando novas e grandiosas empresas, eliminando as fatais dependências de tempo e de sazonalidade. Estavam definidos alguns dos princípios dos pregões universais.

De lá pra cá, a comercialização, a negociação e o intercâmbio de produtos, subprodutos e seus derivativos financeiros — quase todos virtuais —, desenvolveram-se, transmutaram-se e multiplicaram-se de tal sorte, que, hoje, o fluxo daquilo que "não existe" (e que talvez nunca venha a existir) tornou-se infinitamente superior, mais possante e mais influente do que a parca circulação daquilo que efetivamente se produz sobre a face da Terra (matérias-primas e seus derivados mais sofisticados). Se algum dia, cada ação, cada título, cada aplicação, cada fundo, da bolsa de valores, mercadorias e futuros, guardou relação com algum "ente" do plano físico, telúrico, hoje isso é o que há de mais impossível. Instituiu-se, assim, um imenso mercado de almas, em que os "vivos", por razões numéricas e de ponderação, obedecem aos desígnios dos "mortos", senhores e soberanos da realidade.

Então arma-se um circo de opiniões desencontradas, de informações não-confirmadas, de ações não-planejadas, de demissões não-consentidas. Tudo para que os insaciáveis saqueadores de bilhões de U. S. dollars não façam picadinho do Brasil, de sua economia e daqueles que nele moram. Tudo para que as quedas nos pregões de Nova York, de Frankfurt, de Paris, de Tóquio, da Rússia e de Hong Kong, não esmaguem nossos empresários, profissionais-liberais, estudantes, donas-de-casa, crianças e assalariados.

Se é este um caminho sem volta, uma evolução continuada, uma dependência definitiva, para os capitais e para a humanidade, daqui a pouco, mandatários poderão se aposentar. Buscaremos nova forma de representação, elegendo nossos próprios operadores da bolsa (onde Deus efetivamente joga seus dados). Ali se encontram os "políticos de futuro", os oráculos do amanhã. Qual a preferência? Voláteis moderados (conservadores) ou espectrais arrojados (empreendedores)? Sem ideologias, nem partidos; simplesmente respostas rápidas e decisões matemáticas. Sem palavras, nem intimismo; somente frieza e decantada incisividade.

Mesmo porque a lógica fria de "compra e venda" sem limites, sem entraves, sem interferências, já imprime suas marcas na sociedade civil. Enterradas as responsabilidades éticas e morais, todo cidadão tem direito de comprar e vender absolutamente tudo o que vir por aí — desde que ande dentro da lei e desde que pague seus impostos em dia.

Instalou-se a noção de que a imensa maioria dos problemas se resolve através do poder aquisitivo. Sou um solitário, encalhado, recalcado, desiludido, mas quero casar e ter filhos; pago uma agência matrimonial para encontrar a noiva, esposa, mãe, mulher da minha vida. Sou uma obesa, compulsiva, detesto frutas, odeio saladas, não gosto de me arrumar e tenho horror a exercícios; quero, todavia, emagrecer, ser cortejada e linda; compro uma internação num spa, espremo-me numa academia, empanturro-me com iguarias diet, passo no shopping, no cabeleireiro, e renovo-me num banho de loja, de cosméticos, de tinturas e de modismos. Sou ignorante, iletrado, avesso a papos inteligentes, programação cultural, arte e livros; quero, porém, posar de intelectual, refinado, transbordando em fidalguia; matriculo-me num curso de línguas, escolho um país símbolo e procuro me especializar na sua cozinha, finjo ler os best-sellers do momento, meto-me nas salas de cinema alternativas, adquiro alguns CDs de Música Popular metida a Besta — e está, ora pois, resolvido.

Tanta parafernália, tanta nomenclatura, tantos cifrões, tanta quinquilharia. Pra quê? Pra movimentar as bolsas sem valores. Pra preencher as vidas sem sentido.

Afinal de contas, quem não tem propósitos, quem não tem objetivos, quem não tem função, precisa, de algum jeito, preencher a existência; ocupar a cabeça; de preferência, não incomodando os semelhantes nas suas horas livres.

No fundo, não é isso?

J. D. Borges