L'Avventura Notturna

Dos Meus Brothers

Meus amigos me deixaram em frente ao prédio onde se hospedava a Ritinha, o edifício Sagres. Muito efusivos, desejaram-me todas as realizações sexuais prometidas para aquela noite (tomando por base meu encontro precedente — deveras tórrido).

Esses eram os brothers, tão cúmplices e tão afetuosos! Como explicar-lhes, no entanto, que nem sempre a realização sexual é o auge de todo e qualquer relacionamento? Neste ponto, penso que concordo com as mulheres: existem outras coisas a se considerar...

É verdade que eu sonhara acordado com a presença quente e sinuosa da Ritinha. Deitado no sofá, durante o dia, ansiava por tê-la ao meu lado. Em cima e em baixo de mim. Queria tudo aquilo que rapazolas excitados querem. Mas também queria a sua companhia, pura e simplesmente. Um sentimento que, normalmente, não se cultiva durante o Carnaval.

Idílios são raros nessa época do ano.

Mas mesmo à beira de um ataque de irracional paixão, ponderei sobre minha escolha naquela noite de segunda-feira de Carnaval. Deveria eu ter seguido com meus referidos amigos rumo a Guaratuba — ao invés de me encontrar com a Ritinha, em Caiobá (para a aludida noite de amor)? Enumerava os prós e os contras de cada situação, enquanto ela descia pelo elevador.

É sempre difícil preterir a companhia dos amigos. Tantas são as aventuras potenciais em grupo que, por vezes, cogitamos trocar uma noite de acrobacias carnais, — com uma moçoila do nosso agrado —, por uma meia dúzia de estrepolias fraternais, marcantes e históricas — com os brothers.

Porém, tão logo avistei a Ritinha, através da porta de vidro, minhas dúvidas se dissiparam. Ela estava linda com seu batom vermelho-amarronsado, seu cabelo fulgurante e sedoso. Ela estava deliciosa dentro daquela blusa preta estrategicamente decotada, dentro daquela saia curta de desabotoar.

Ritinha caminhava agora em minha direção. Pleno em júbilo, constatei que ela seria minha novamente.

Anuviou-se a lembrança dos brothers...

Da Tchurma

Ritinha desceu acompanhada de toda a turma que com ela se alojava no apartamento. Eram, ao todo, dez pessoas — um grupo que se distribuía entre três quartos, uma sala, uma cozinha, um banheiro e uma varanda.

Tal configuração de pessoas e de cômodos já bastava para complicar meu acesso a um dos quartos e a uma das camas porventura disponíveis. Não obstante, havia o tal do Paulo.

Auto-proclamado líder da tchurma, Paulo resguardava a integridade física de suas amigas. Jamais facilitaria minha penetração naqueles domínios. Para não correr riscos, ele mantinha uma das chaves do apartamento em seu casto poder e a outra nas mãos de sua comprometida irmã que — chegando sempre mais cedo que os demais — garantia o mínimo de compostura e de austeridade.

Este era o desanimador quadro que se me apresentava já desde o dia anterior (quando, por primeira vez, fiquei com a Ritinha).

Como não dispunha de automóvel, que me conduzisse até a Minha Casa e a Minha Cama (localizadas numa cidade próxima), o menu de opções eróticas para aquela noite se limitava a estratégias pouco ortodoxas: sedução na areia da praia, beijos sobre as escorregadias formações rochosas, amassos em visados e ameaçadores esconderijos (tais como bancos de praça, troncos de árvore, garagens temporariamente abandonadas, varandas, gramados e mesas de bar).

Munido de talão de cheques (o qual olvidara na dita noite anterior), eu planejava arrastar a Ritinha para um hotel qualquer da cidade. Desembolsaria a quantia equivalente a uma diária — apenas pelo prazer de uma noite de amor confortável.

Fomos nos desvencilhar da trupe do apartamento após uma hora de muda (entenda-se polida) convivência com seus membros. Fomos nos desatando, por partes, do grupo e dos subgrupos que se formaram. Ritinha, sabedora das minhas ávidas intenções, a todo momento anunciava: — "Daqui a pouco vamos andar por aí. Só nós dois!"

Ah, Ritinha! Só você para me compreender tão bem...

Do Vagar

Enfim sós. Por sugestão minha, seguimos em caminhada pela praia, que mais abandonada do que de costume, insinuava-se como doce cenário para o nosso namorar.

Ao aproximarmo-nos, entretanto, do mar, atingiram-nos vendavais insistentes e robustos. Fomos, então, varridos de lá.

Optamos, em seguida, por escalar as sugestivas formações rochosas, em uma das pontas da praia.

Que rochedo, que nada! Um bravo salva-vidas por lá rondava, impedindo escaladas e potenciais acidentes.

Persistindo em minhas más intenções, eu ensaiava um discurso que pretensamente nos conduziria para o tão sonhado quarto de hotel. Tomei fôlego e principiei por indagar Ritinha sobre a nossa próxima parada: — "Para onde vamos agora? Será que tem um lugar...(com tais e tais características)?"

Embalado por elaborado raciocínio, terminei por sugerir o hotel.

Ritinha não fez cara feia e nem ladrou comigo — como muitas moças fazem nessas horas. Tampouco bradou máximas consagradas dentre o mulherio, como: "Não sou do tipo que você está pensando" ou ainda "Não sou como as outras garotas as quais vocês está acostumado".

Eis um dos motivos pelos quais eu prefiro estar com mulheres mais velhas. Nesses momentos, elas se mostram infinitamente mais compreensivas! Experimentadas entendedoras da natureza masculina, nos recusam com suavidade e inteligentes evasivas — não com um arsenal de decorados impropérios.

Dada a habilidade argumentativa da minha experiente interlocutora, não logrei convencê-la a me acompanhar a uma suíte de hotel. (Pelo menos não nessa primeira hora.)

Da Orla

Sentamo-nos num banco, na orla de uma outra praia — esquecida pela audiência. Lá os transeuntes eram raros, conquanto não houvessem se extinguido por completo. Apesar das entusiasmadas "preliminares" entre mim e ela, não chegamos, por razões mais ou menos óbvias, às vias de fato.

Primeiro por não ser aquele um local ermo.

Segundo porque Ritinha ratificou sua intenção de não ir "mais longe", embora "tivesse ido muito com a minha cara" (palavras dela). Acreditei-lhe sincera quando disse que não era seu costume ir "tão rápido", logo no segundo dia; sem me conhecer direito, etc.

E terceiro porque, surpreendentemente (ou não), eu me descobri satisfeito por estar simples e apenasmente ali — em companhia dela. Contentava-me com o mero contemplar de sua cara, de seu corpo, de sua espontaneidade. Agradava-me ouvir-lhe as histórias, os elogios e as constatações sobre nossa trajetória desde o dia precedente. Afeiçoei-me a ela e à sua personalidade, que, frente às minhas investidas mais "assanhadas", oscilava entre firme e apaixonada.

Da Chuva

Como diminuísse ainda mais o número de passantes na quase deserta praia, concluímos que era alta noite.

Com a conclusão, chegaram os primeiros e inofensivos pingos de chuva, para nos refrescar. Torci para que a carinhosa garoa não decidisse engrossar; mas minhas preces não foram atendidas. Alguns minutos após o início da chuva, corríamos para a primeira copa de árvore que pudesse nos abrigar.

Tão logo me recostei no tronco do acolhedor vegetal, senti o corpo de Ritinha de encontro ao meu. Seus pés tentavam equilibrar-se sobre as irregulares e protuberantes raízes da árvore. Estando ela de pé, às minhas mãos foi permitido percorrer aquelas famosas curvas limítrofes, que ficam entre o fim das coxas e o começo dos grandes glúteos. Uma emoção que compensou o aguaceiro.

Dada persistência do dilúvio, o teto de folhagens — que a nós garantia razoável impermeabilidade — veio a ceder. Fomos, mais uma vez, obrigados a migrar.

Sem alternativas, caminhamos por mais de um quarteirão de ruas encharcadas.

Surgiu, então, uma garagem iluminada e atrativa. Ritinha hesitou por um momento, porém puxei-lhe pelos braços e nos escondemos lá, por um tempo. Finalmente um lugar seco e relativamente agradável. Aprazível, embora continuássemos com a irritante presença dos passantes.

Apesar dos pesares, fomos um pouquinho mais longe na tal garagem. Basta dizer que revirei-lhe a saia, encontrando um traseiro tenro, úmido... e gelado! Levantei-lhe também a blusa e o sutiã (o que não era uma propriamente novidade).

Ritinha preocupava-se, agora, com o horário: — "Não posso chegar muito tarde; senão o que vão pensar de mim no apartamento?" Fez esse comentário quase que uma dezena de vezes até que eu concordei em levá-la pra casa.

Fiz questão de me mostrar contrariado.

Do Vão

Os constantes deslocamentos nos garantiram, por mera questão de sorte, a proximidade do seu edifício, o tal Sagres. Tranqüilizada pela visão de sua morada, Ritinha topou ficar comigo mais uns minutinhos. Sem sofás, sofá-camas, poltronas ou bicamas, novamente apelamos para o improviso.

Um vão, entre a entrada do hall social e a garagem, serviu de palco para os nossos últimos malabarismos. (Não me agradaria, neste momento, descrever detalhes mais mundanos. Apenas para satisfazer a curiosidade alheia, confesso que quase chegamos a copular. De pé.)

Do Adeus

A despedida foi árdua. Eu, num misto de desejo e de ternura, não conseguia da pequena Rita me desembaraçar. Ela, entre saudosa e chorosa, não sabia como me abandonar.

Por fim, dei adeus àquele rosto molhado, prometendo um telefonaço — quando do meu regresso a São Paulo, minha cidade natal.

Da Pizza

Ignorante do horário vigente, procurei por alguém que pudesse me dizer que horas eram. Como não havia ninguém à vista, decidi bater à porta de moradas iluminadas. Salvaram-me uns animados carnavalescos, cuja casa eu quase invadi atrás de valiosíssima informação.

Descobri que eram quase cinco da manhã. De acordo com a prévia combinação, entre mim e os brothers, eu deveria aguardá-los até as sete da matina — quando nos reencontraríamos defronte ao afamado Sagres.

Entre as cinco e as sete, ensinou-me a matemática, havia duas longas horas. E havia eu: de mãos abanando, cansado e sem idéias.

Foi meu estômago quem me tirou dessa agonia, desse marasmo, convidando-me para a ceia.

Seguimos na trilha de um luminoso que indicava um possível estabelecimento comercializador de gêneros alimentícios.

No caminho, uma moça solitária e receptiva. Desinteressado, deixei-a para um motoqueiro de ocasião que, bêbedo, tratou de agarrá-la num piscar de olhos (bem à moda do Carnaval). Eu tinha outras fomes e vibrei ao ler no luminoso, que agora se aproximava, a palavra "pizza".

A pizzaria estilo fast-food, cujo nome não me recordo, trouxe de volta reminiscências do Rock in Rio e do Mister Pizza — onde eu diariamente me fartava, à saída dos shows.

Observei meus colegas de refeição pós-folia, enquanto meditava sobre comer ou não comer outro pedaço. Havia uma loura adorável (lugar-comum no Paraná) acompanhada de um sujeito "sem graça" de perna engessada. Havia também um trio de homens cujos olhares, em minha direção, me fizeram suspeitar sobre sua masculinidade. Havia ainda adolescentes imberbes, que curtiam as descobertas das primeiras noitadas.

Do Sono

Recém-alimentado, meu corpo implorava por descanso. Pensei num cochilo que duraria até às seis, seis e meia da manhã. Depois, era esperar só pelos brothers em frente ao Sagres. Apostava na claridade do amanhecer, que não me deixaria perder a hora.

Pensei logo no mar e voltei a ele — a fim de me deitar na praia.

Escolhi uma faixa suficientemente lisa de areia e ensaiei um ronco, tendo os sapatos como travesseiro.

Os sapatos eram duros demais, comprimiam a minha cabeça. Troquei os sapatos pela camiseta... much better now...

Pouco a pouco, no entanto, vieram o frio e o vento da madrugada. Sem a luz do sol para me aquecer, tive de desistir do mar.

Saindo da praia, avistei um palco improvisado — em que se realizara um show de axé music. Aparentemente, tal instalação oferecia um teto e uma espécie de anteparo para a ventaneira. Subi as escadas e examinei o local.

Não demorou muito para eu vir a saber que teria companhia. Numa rede quadriculada dormia um provável guarda. Saí de fininho...

Voltei à terra. Logo na primeira rua, topei com um bar de dois andares. Sua "cobertura" oferecia, além de teto e anteparo, maior privacidade e maior escuridão.

Outra escada, outro exame do local e... acredite se quiser, outro guarda!

Da Inevitável Volta ao Sagres

Exausto, desalentado, aceitei o fato de que teria de esperar acordado em frente ao Sagres.

Reencontrando-o pela enésima vez, entre o sono e a vigília, pedi-lhe uma sugestão de acomodação. Muito prestativo, ele me respondeu:

— Deixe-me pensar... Na minha garagem não há nada; ou melhor, está trancada. Esqueça meu hall, ao qual você também não tem acesso. (Lembre-se: não dispõe de sofás, bicamas e variantes do gênero.) Resta-te o meu gramado, iluminado por holofotes; nele encontrarás o mínimo conforto e a mínima tranqüilidade.

Aceitei de pronto e deitei-me na grama... Sabia que sujar-me-ia de terra, de barro; sabia que picar-me-iam insetos; e sabia que coçar-me-ia noite adentro, graças aos ciscos e à folhagem. Lorde Morpheus, contudo, me venceu e, felizmente, adormeci...

Voltei ao mundo dos acordados por obra daquela que se revelara minha inimiga número um: a chuva!

O que seria de mim agora?

Do Automóvel Curitibano

Com o que ainda me restava de discernimento, tive a última idéia da noite: dormiria dentro de um automóvel.

Qualquer pessoa, em pleno domínio de suas faculdades mentais, acharia isso um absurdo. E era mesmo. Afinal, como e onde encontraria um carro aberto, destrancado?

Tentei todos os automóveis da calçada do Sagres. Nada.

Tentei, então, todos os da calçada oposta. Não é que o último estava destrancado?

Apesar de sonado, reconheci a autenticidade do milagre e parei estuporado... Despertei para as possíveis conseqüências da invasão: o que diria, se lá dentro me encontrasse, o dono do carro??

Placa de Curitiba. Alta madrugada. Julguei que o dono já estaria, bem provavelmente, dormindo... Entrei e deitei no banco da frente. Ajustei-o confortavelmente e apaguei, enquanto a chuva caía torrencialmente do lado de fora.

Acordei dolorido, de mal jeito, em meio a um pesadelo. Mudei para o banco de trás e apaguei novamente.

Acordou-me, por fim, o temível dono — que me observava pela fresta da porta aberta, estupefato.

Pedi todas as desculpas que estava em condições de pedir, dizendo que fugia da chuva, que morria de sono, que não viera roubar seu automóvel, que já estava indo embora.

Levantei-me e, com passos de sonâmbulo, saí tropeçando do carro. Acelerado, sem nem calçar os sapatos; metendo os pés n’água.

A chuva persistia.

Do Reencontro

Deus enviou-me, então, uma última coincidência incomensurável: naquele exato momento, em frente ao Sagres, aportava... o carro dos brothers!

Eles haviam perguntado por mim no apartamento da Ritinha. Como não obtivessem qualquer resposta, intrigados, me abandonavam.

Não fossem as minhas incontáveis batidas no vidro do carro dos brothers, não fosse o dono do automóvel curitibano que viera (na hora certa) me despertar, não fosse mais uma série de outras contingências, eu teria ficado em Caiobá.

E você nem saberia desta história...

J. D. Borges