Fellini e a vida-amarga-vida
La Doce Vita faz quarenta anos, e o sentimento do vazio, do nonsense, do nada, que domina e corrói o protagonista Marcello, permanece inabalável, intacto, inextinguível — alive and well. A angústia, o desnorteamento, o fastidio da urbe, corre pelo sangue, corre pelas ruas, corre pelas relações — inaplacável, insaciável, inexpugnável, indestrutível cidade. Como náufrago da própria existência, atrás de uma tábua de salvação, Marcello se agarra sucessivamente: à amante, à namorada, à beleza, à religião, à intelectualidade, à família, ao pai, à opulência, ao casamento, à separação, à celebração, à natureza. E em nenhum deles encontra qualquer sentido, qualquer razão, qualquer motivo, que justifique uma continuidade, uma ilusão, uma permanência. Fellini não perdoa, e sentencia um final aflitivo e melancólico para a civilização citadina. Sem dó, estilhaça igualmente a alma e os sonhos do espectador. Isso tudo em preto-e-branco, e há quarenta anos atrás. Salvação pela amante. Numa boate esfumaçada, atrás de um flagrante, atrás de um príncipe, Marcello encontra-a casualmente. Maddalena, entre enigmática e aborrecida, arrasta-o para um passeio, em seu conversível de filha de milionário. Por ruas silenciosas e por paradas sem motivo, conduz-se o casal, em diálogos desencontrados e desgostosos da vida. Em busca do inusitado, oferecem carona a uma prostituta e, em meio ao desconforto de um apartamento alagado, escolhem o quarto da dita cuja, para lá fazem o amor, pernoitando até o amanhecer. Concluem, antes, que só o amor lhes traz energia. Uma energia efêmera — como o mesmo amor, que acaba sempre. Salvação pela namorada. A realidade volta em tons mórbidos. Marcello retorna à casa e encontra sua namorada Emma, intoxicada, em meio a náuseas. Ferida por suas constantes ausências noturnas de jornalista, entre desconfiada, solitária e paranóica, ela se envenena pesadamente à base de drogas. Marcello quer nutrir-lhe compaixão e tem esperança de voltar a amá-la, nem que seja no desespero da morte. Emma sobrevive, porém. E ele não vê seu amor ressuscitado. Salvação pela beleza. Desde o salto do avião, até as coletivas, até os embalos da noite, Marcello tem o dever de ciceronear Sylvia, a superstar. Loura, alta, esbelta, escultural, ela rende o protagonista à condição de escravo, de vassalo, de demente. Marcello chama-a de Eva, de primeira mulher da existência, e pede-lhe encarecidamente que se vá, que desapareça, que por favor não mais o atormente com suas promessas de gozo e de prazer eterno. Hipnotizado e encantado com a independência daquela deusa, segue-lhe os passos e faz-lhe as vontades, caçando leite para gatinhos brancos e encharcando as calças na Fontana di Trevi. Tanta diligência para, no fim, na madrugada, descobrir uma Sylvia submissa e subserviente, subordinada a um cafajeste dos mais ordinários — bronco, machista e bêbado. Salvação pela religião. Na cobertura de uma das aparições da Virgem, da Mãe de Deus, Marcello testemunha o fanatismo religioso em todo o seu exagero. Quer crer que pode haver, quer crer que pode ver, Maria, como as crianças, como aqueles que agonicamente esperam por um milagre que possa reverter o infortúnio de suas existências. Quando cai, todavia, a chuva, e quando assiste à multidão patética, sacudindo-se em idas e vindas, desgovernadamente, ao bel prazer de travessos videntes, Marcello se convence de que religiosidade é manipulação, e de que seguir os padres, seguir a Igreja, é fazer-se marionete de interesses puramente humanos e fatalmente pequenos. Salvação pela intelectualidade. Coincidentemente numa igreja, Marcello reencontra seu amigo, Steiner. Amigo que lhe cobra o livro, que Marcello afirmava estar escrevendo. Na defensiva, e no improviso, afirma-o pronto, pronto para se ler. Em seguida, Steiner executa, solene e retumbante, ao órgão, um clássico da grandeza humana e do virtuosismo das teclas. Marcello, humilhado, retira-se da cena em silêncio. Mais tarde, ainda na casa do mesmo amigo, sente-se embevecido pela aura intelectual, pelos tipos exóticos, pelas frases de efeito. Pede para freqüentar aquele círculo mais vezes, ao que Steiner acena favoravelmente. Logo no minuto seguinte, porém, presencia uma cena surreal, sem mais nem porquê. O amigo grava as vozes de todos e repete seus diálogos em meio a ruídos da natureza. Marcello, perturbado pelo despropósito dos sons e dos dizeres, percebe-se entre sonsos, entre doidivanas, entre gente desiludida e de alma negra. Salvação pela família. Aconchega-se, então, na candura dos filhos de Steiner, que surpreendem os convivas num inusitado aparecimento. Apega-se a eles e à possibilidade de construir um lar, um equilíbrio, uma descendência. Um porquê para si mesmo. Tem, no entanto, impiedosamente esmagados os seus anseios. Mais adiante, na fita, sem razão aparente, Steiner liquida os mesmíssimos filhos, que Marcello invejou, para matar-se posteriormente. Como um pilar de retidão, de nobreza, de força, desmorona e esmigalha os mais adoráveis e imaculados seres. Salvação pelo pai. Visita-o de surpresa, o pai. Pergunta-lhe superficialmente sobre a vida, dá-lhe inofensivos conselhos. Alude a uma noite festiva, num cabaré conhecido seu. Entre dançarinas, gracejos e champanhe, Marcello assiste estupefato à desenvoltura e à disposição daquele pai, desconhecido, simpático, surpreendente. Senhor de si, anuncia tórridas peripécias, que divertem Marcello. A luz do dia, contudo, traz à tona o ancião triste e impotente. Se horas antes via, na figura do pai, um gigante de energia, vitalidade e desejo, Marcello de repente dá de cara com a falibilidade humana, com a falibilidade física e moral, com a falibilidade de sua ascendência. Salvação pela opulência. Numa festa, no seio da grã-finagem, insere-se o jornalista boêmio. Em meio à excentricidade dos ricos, Marcello quer se perder. Quer caminhar pelas masmorras de quem tem tudo e de quem tudo desfruta, sem culpa, sem pesar, sem se arrepender. Nos labirintos de um castelo, é possuído por uma mulher madura que se lhe apresenta. No espanto, entrega-se. À luz do sol, porém, vê-lhe o filho, testemunha presente, e envergonha-se de si mesmo. Salvação pelo casamento. Na confusão da mansão, também reencontra Maddalena. Maddalena que confessa amá-lo, Marcello, embora confesse também sua inclinação para a sexual polivalência. Ele lhe propõe casamento, talvez seja ela, talvez ela lhe propicie a segurança e a solidez que tanto quer nas mulheres que vê. Marcello, como que iluminado pela possibilidade, desmancha-se em sentimentalismo e promessas de amor eterno. Enquanto isso, cala-se Maddalena, cedendo a beijos e abraços de um outro anônimo qualquer. Salvação pela separação. Em mais uma de suas incontáveis discussões por posse, digladiam-se, na estrada, Marcello e Emma. Insulta-a como se fosse ela a desgraça maior de seu viver. Emma salta do automóvel e segue a pé. Marcello insiste para que ela entre novamente, numa cena típica de qualquer tempo. Emma sobe. Derrama-lhe agora um caminhão de impropérios. Tomado por inédita fúria, Marcello muda subitamente de idéia, tocando-a para fora de sua macchina e partindo em arrancada estridente. No seu orgulho, Emma saboreia a solidão do vento e dos cigarros acesos. Nasce o dia e, ao invés de liberar-se, Marcello retorna. Retorna aos braços daquela que impunha limites intransponíveis para o seu eu. Retorna, vencido, ao amor decadente de Emma. Salvação pela celebração. Comemorando o regresso de uma amiga ao seu séquito de convivas, ou o que quer que seja, Marcello lança mão de seus últimos recursos: encarna Dionísio e propõe um festim à base de muita irresponsabilidade e de muita inconseqüência. Apropriando-se de uma casa que não é sua e misturando gente de todas as origens e tendências, promove até strip-tease da homenageada — e chega a ensaiar uma orgia orquestrada, quando é interrompido pelo dono do lugar e vê as luzes novamente acesas. Perambulando pelos caminhos que levam ao mar, tem seu último instinto de decadência frustrado. Nem a degradação ele consegue adotar como lema. Assim como a arraia de olhos esbugalhados que ele vê morrer na praia, Marcello é o homem da cidade — asfixiado até a morte, entre os seus iguais, em meio ao seu habitat mais natural: a sociedade. Moderna, corrupta e viciosa. Assim como Marcello, que desde a tomada inicial, dentro do helicóptero, até a tomada final, em sinais para a moça do outro lado das águas, assim como ele, que não consegue ouvir nem se fazer entender, assim está o homem da urbe, ilhado entre seus semelhantes, isolado na companhia de seres que não o compreendem, condenado às barreiras da incomunicabilidade eterna. Fellini não poderia ter sido mais irônico e cínico ao intitular um filme assim de “La Doce Vita”. |