Hobsbawm
e o Nuovo Secolo É constante, nos intelectuais, a tentação de querer prever o futuro. A maioria, em algum momento da vida, cede, e se compromete com a posteridade, em maior ou menor grau. “No final do século
XIX, muita gente dedicou-se à arte de imaginar o que seria o mundo dali a cinqüenta
anos, e todas as suas previsões revelaram-se incorretas.” Embora ciente dos riscos, Eric Hobsbawm, o eminente historiador inglês de “A Era dos Extremos”, não resistiu aos apelos do milênio e fez também a sua fezinha no porvir. Precaveu-se, no entanto, ao dar uma entrevista — em vez de escrever um livro. Ainda que publicada, a entrevista toma ares de conversa informal e é pontuada por inúmeras ressalvas. “Precisamos entender
que, na prática e por princípio, grande parte do futuro é inteiramente
inacessível... Por isso, o que podemos fazer é discutir os problemas tal como
se apresentam atualmente, e identificar algumas probabilidades. Às vezes, essas
probabilidades serão muito elevadas; em outras, podem ser transtornadas por
acontecimentos completamente imprevisíveis.” Fim de Século De início, Hobsbawn fixa a linha divisória entre os séculos XX e XXI. Baseado na teoria dos ciclos de Kondratiev, estabelece que o crepúsculo do século XX, conseqüente aurora do século XXI, se colocaria em algum ponto entre a nova fase da economia global, a partir de 1973, e as suas retumbantes crises, a partir de 1990. Baliza-se igualmente no colapso da União Soviética e no novo painel de políticas e ideologias, desde a extinção dos regimes comunistas no Leste Europeu. “A escolha de uma
data específica não passa de uma convenção, e não é algo pelo qual os
historiadores estejam dispostos a brigar... Apesar disso, creio ser possível
dizer algo sobre a fisionomia da nova era, pois algumas de suas características
políticas e econômicas são evidentes. Em vários sentidos, podemos afirmar
sem a menor dúvida que estamos vivendo no novo século.” A Arte da Paz Hobsbawm não acredita num novo conflito entre grandes potências. Pelo menos enquanto os Estados Unidos forem soberanos. Pelo menos enquanto a China não se projetar como um adversário a altura. Ao mesmo tempo, não foge à possibilidade de uma guerra nuclear; pois vê, no avanço da tecnologia, um fator propício à produção e à distribuição de armamentos. Ainda assim, ressalta: “Tendemos a esquecer
que existem regiões, como a América Latina, em que nenhum exército jamais
cruzou a fronteira de um Estado inimigo em todo o século XX, com a única exceção
da Guerra do Chaco entre a Bolívia e o Paraguai (1932-35).” A Arte da Guerra Hobsbawm estabelece a Guerra dos Bálcãs como novo paradigma para os conflitos do novo século. Para ele, não haveria ineditismo maior que a explosão de uma mera disputa interna — numa luta armada de dimensões globais. Põe-se perplexo diante da invasão de um estado nacional, no caso a Iugoslávia, por tropas estrangeiras, com o objetivo de solucionar querelas locais. “Evidentemente
estamos diante de uma conseqüência do fim da Guerra Fria. Durante esse período,
a relativa estabilidade do mundo baseava-se essencialmente em uma regra de ouro
do sistema internacional: não se atravessa fronteira de outro Estado soberano,
pois isto resultaria num desequilíbrio da balança de poder. Após o término
da Guerra Fria, essa regra deixou de ser respeitada.” Ainda com relação à Guerra dos Bálcãs, Hobsbawm assinala a precisão com que os alvos são hoje selecionados. Encontra aí outra distinção importante dos conflitos característicos do século XX, que nunca pouparam populações civis. Em contrapartida, prevê que, no século XXI, se faça maior uso de “bombardeios relâmpago”, justamente por eles se mostrarem cada vez mais efetivos. Sem deixar de enfatizar, claro, o gap bélico entre primeiro e terceiro mundo: “Em um plano mais
baixo surgiu um enorme hiato, o dos povos que não têm acesso à tecnologia de
ponta, entre as guerras conduzidas por aviões voando a 15 mil metros de
altitude e lançando bombas extremamente sofisticadas, e as guerras no solo, com
combates corpo a corpo, nos quais as pessoas se matam até mesmo com machados ou
facões... Isto foi evidente em Kosovo, onde as duas guerras foram travadas
simultaneamente, mas sem qualquer contato entre si.” Opinião Pública Hobsbawm atribui posição de destaque à mídia e ao que denomina “efeito CNN”. Segundo ele, a censura de fatos ou notícias — tal como ocorria durante a Guerra Fria — fica hoje impossibilitada. Ao mesmo tempo, alerta para a lavagem cerebral promovida pelos meios de comunicação yankees — que, afinal, tendem a apresentar suas causas como justas e legítimas. “Precisamos sempre
lembrar que os Estados Unidos são, em certa medida, uma potência ideológica
que se originou, tanto quanto a União Soviética, de uma revolução. Por esse
motivo, eles sentem a necessidade de impor ao mundo seus próprios princípios,
como parte essencial de sua política externa.” Nacionalismo Ainda que se assista a uma contestação da autoridade suprema do Estado, Hobsbawm não acredita no fim, nem no enfraquecimento, das nacionalidades e das nações. Elege os “mitos nacionais” como sustentáculo para iniciativas e movimentos políticos recentes — sempre que esses, mui habilmente, encontram sua justificação nas tradições, nas glórias e no passado históricos. “Há um elemento
poderoso, válido em toda parte. Trata-se da necessidade do ‘permanente’ e
do ‘fundamental’, a qual assume enorme importância psicológica não só
para os indivíduos, mas também para as comunidades, sobretudo na segunda
metade do século XX, uma época de mudança e insegurança permanentes.” To
Be or Not To Be “Uma das grandes questões que serão colocadas pelo século XXI é a da interação entre o mundo onde o Estado existe e aquele onde ele deixou de existir.” Hobsbawm analisa, mais a fundo, a condição sui generis dos estados nacionais. Para isso, traça o panorama da ascensão e queda de seu poderio. Em sua ascensão, no século XX, os estados nacionais realizariam um feito que nem mesmo o Leviatã de Hobbes poderia almejar: pela primeira vez na História, cidadãos matavam e a se deixavam matar em nome do Estado. Já no século XXI, a queda se afirmaria pelo que Hobsbawm chama de “perda do monopólio sobre os meios de coerção”. Embora mais capazes de controlar e de vigiar as atividades em seu território, os estados nacionais enfrentariam a resistência do Neoliberalismo e a noção de que não se deseja mais viver sobre uma autoridade superior, soberana. “Durante a maior
parte da história, sempre houve a suposição generalizada de que os cidadãos
obedeceriam a um governo efetivo, qualquer que fosse ele, e contasse ou não com
uma aprovação geral. Claro que, muitas vezes, o governo era respeitado por ser
forte, mas, em outras, esse respeito baseava-se em uma idéia expressa por
Hobbes, a de que qualquer governo eficaz é melhor que nenhum governo.” Hegemonia “O que eu gostaria de enfatizar é que o próximo século não será de ninguém, porque uma coisa me parece cada vez mais evidente: o mundo tornou-se grande e complexo demais para ser dominado por um único estado.” Pergunta inevitável ante a um mundo onde estados se desintegram: quem assume o comando? Muito embora reconheça que o século XX foi também o “século americano”, Hobsbawm não aposta numa continuação da hegemonia econômica dos Estados Unidos. “Esta é uma situação que, na minha opinião, tende a acabar. Em termos demográficos, os Estados Unidos serão relativamente menores, e mesmo hoje respondem por uma parcela menor da capacidade produtiva mundial... Duvido muito que os Estados Unidos possam continuar a ser a locomotiva produtiva do mundo, pelo menos da maneira como o foram em grande parte do século XX.” Quanto à hegemonia
cultural dos EUA, Hobsbawm arrisca menos e prevê sua continuidade. Lastreada na
cultura popular e, agora, largamente favorecida pela internet e pela predominância
da língua inglesa, provavelmente não sofrerá abalos. Ainda assim, Hobsbawm
compara seu domínio com aquele exercido pela música italiana, nos séculos
XVII e XVIII, bem como, com o domínio exercido pelo império britânico, no século
XIX — ambos descontinuados. Globalização “A globalização não é o resultado de apenas uma ação, como acender a luz ou dar a partida no carro. Ela é um processo histórico que, embora tenha sido muito acelerado nos últimos dez anos, reflete uma transformação incessante. Não é nada evidente, portanto, em que momento podemos dizer que esse processo chegou ao fim e pode ser considerado encerrado.” Tema fatal em discussões sobre os rumos do mundo, a globalização não poderia fugir ao escopo de Hobsbawm. Para ele, a grande mudança, o grande motor, consiste na superação das fronteiras geográficas e nacionais — quando a produção e a distribuição, da indústria e do comércio, se vê independente da distância e do tempo. Inevitavelmente, porém, Hobsbawm critica a utopia embutida nessa possibilidade: “O problema da
globalização está em sua aspiração a garantir um acesso tendencialmente
igualitário aos produtos em um mundo naturalmente marcado pela desigualdade e
pela diversidade. Tentamos encontrar um denominador comum acessível a todas as
pessoas no mundo, a fim de que possam obter coisas que, naturalmente, não são
acessíveis a todos.” Riqueza Hobsbawm confirma o crescimento do bolo, porém não crê que haja hoje uma distribuição menos desigual de pedaços. Deposita suas esperanças nos chamados “fundos de pensão” e cita o caso dos novos operadores (amadores) das bolsas. Mostra-se bastante cético quanto ao “livre mercado”, e desfere-lhe duros golpes. “Os Estados Unidos e
a Alemanha tornaram-se países industrializados no século XIX exatamente porque
não aceitaram o livre comércio e insistiram em proteger suas indústrias até
que elas tivessem condições de competir com a economia dominante, que na época
era britânica... A despeito da retórica favorável à liberdade do mercado,
estamos testemunhando um retorno ao protecionismo e às disputas comerciais
entre os Estados Unidos e a União Européia, e também entre os Estados Unidos
e a China.” Fator Humano Em que pesem as desigualdades, Hobsbawm acredita que a vida melhorou no século XX, como em nenhum outro. Destaca o fato da fome não ser mais parte do dia-a-dia do grosso da população. Destaca também o acesso que hoje se dá à cultura e à informação. Atenta, porém, para a obsolescência do homem perante a máquina: “A grande novidade
é que, de todos os fatores de produção, os seres humanos são cada vez menos
necessários. E o motivo é que, em termos relativos, eles não produzem tanto
quanto custam. Os seres humanos não foram criados para o capitalismo... Temos
de garantir a sobrevivência daqueles que, no passado, teriam sido capazes de
obter sua renda no mercado de trabalho. Esse é o maior problema que temos à
frente.” Esquerdismo “A esquerda continua a existir, pois ainda persiste uma diferença entre esquerda e direita. Em geral, aqueles que negam essa diferença pertencem à direita.” Mesmo sem atestar seu óbito, Hobsbawm reconhece na esquerda algumas debilidades. Entre elas, a constatação de que o socialismo nunca teve um projeto efetivo de sociedade — restringindo-se, outrossim, a uma crítica da realidade capitalista. Ao mesmo tempo, enumera os objetivos alcançados pela esquerda (sufrágio universal, proteção social) que, por terem sido realizados muito prontamente, terminaram por enfraquecer a própria esquerda. “Há outro fator
ainda mais profundo que debilitou muito a esquerda... Trata-se da sociedade de
consumo... É a identificação de liberdade e escolha individual, sem qualquer
referência às conseqüências sociais... No passado não se acreditava que a
luta pela liberdade individual fosse incompatível com a luta pela emancipação
coletiva. No final do século XX, tornou-se cada vez mais evidente a existência
de um conflito entre essas duas necessidades... Isto provocou um grande abalo na
esquerda, que luta em favor de objetivos coletivos e persegue a justiça social.” Política A despolitização dos jovens preocupa Hobsbawm. Preocupa-o também a desestruturação das famílias, tradicional alicerce dos históricos movimentos sociais. Para ele, o mercado hoje prescinde da política, pois dá ao consumidor todo o poder que ele parece necessitar. O processo político passa a ser secundário então. “Isto coloca em
crise a própria função da cidadania. Se os consumidores são capazes de alcançar
seus objetivos pelo exercício cotidiano de seu poder de escolha... o que resta
exatamente da cidadania? Há ainda alguma necessidade de mobilizar grupos de
pessoas para a realização de objetivos políticos?” Objetivo Individualistas ou não, consumistas ou não, o seres humanos ainda buscam a felicidade. Hobsbawm vê ameaçados, nessa busca, os antigos valores, normas, regras e modelos nos quais se costumava confiar. Segundo afirma, a felicidade se baseia hoje num ideal inatingível de satisfação — intimamente relacionado à incessante competição social. “Não é coincidência
o fato de que a psicoterapia, uma profissão do século XX, difundiu-se mais em
duas comunidades caracterizadas pela mobilidade sistemática e pela grande
incerteza: os judeus e os americanos. Em ambas, é muito comum recorrer a alguém
que possa ajudar no enfrentamento de situações para as quais o passado não
proporciona indicações ou modelos.” Trabalho Hobsbawm aponta uma tendência ao imediatismo e às recompensas imediatas, também no mundo do trabalho. Em meio a um dinamismo em que empresas se devoram, ninguém mais está disposto a esperar anos por um retorno, qual seja, ou a apostar num projeto qualquer de longo prazo. Aspira-se medir os resultados diariamente, quando não de hora em hora. E na corrida para que se gaste cada vez menos, o homem continua sendo o gargalo: “A insegurança do
emprego é uma nova estratégia para aumentar os lucros, reduzindo a dependência
da empresa em relação à mão-de-obra humana ou pagando menos aos empregados.
Na economia capitalista moderna, o único fator cuja produtividade não pode ser
facilmente ampliada e cujos custos não podem ser facilmente reduzidos é o
relativo aos seres humanos. Daí a enorme pressão para eliminá-los da produção.” Família Apesar de reconhecer as conquistas das mulheres, no que se refere ao direito de votar e ao direito de exercer uma profissão, Hobsbawm teme pelas mães, crianças e famílias. No equilíbrio delicado entre a maternidade e o trabalho, as mulheres teriam de recorrer a babás e creches, como, de alguma forma, fizeram as famílias aristocratas dos demais séculos. Hobsbawm vê nessa solução um custo social e um custo emocional muito grandes. “Por isso é que o
percentual de mulheres que chegam ao topo de suas profissões é inferior ao de
homens. Muitas mulheres simplesmente não têm condições de competir além de
determinado limite... A emancipação feminina só deu o primeiro passo.” Casa Hobsbawm mostra-se igualmente descrente com relação ao incentivo que hoje se dá ao “trabalho em casa”. Acredita que o homem jamais renunciará ao contato físico com seus colegas de profissão, por mais evoluídas que se mostrem as tele-comunicações. Hobsbawm acha inconcebível que não se queira trocar idéias com os outros sobre o que se está fazendo. “É muito desconfortável
para um ser humano não ter ninguém com quem conversar e renunciar aos contatos
pessoais. Estes são elementos absolutamente essenciais para a produtividade e a
eficiência no trabalho. Toda essa conversa sobre trabalho descentralizado, em
casa, em parte não passa de propaganda para justificar demissões.” Mundo Ainda no universo das questões humanistas, Hobsbawm guarda para o meio ambiente considerações especiais. Observa que, embora estejamos a ponto de tornar o planeta inabitável, esgotando seus recursos, a discussão em torno da chamada ecologia é um tanto quanto recente. Data da década de 1970. Hobsbawm aponta os Estados Unidos como país pioneiro em iniciativas ecológicas, enquanto acusa-os de terem arrasado seu ambiente como ninguém. “As nossas paisagens
são, em sua maior parte, um artefato humano... Em todo o mundo desenvolvido, e
sem a menor dúvida na Europa, o meio ambiente foi transformado sobretudo pela
agricultura... Acho que está se tornando cada vez mais possível de recuperar
grandes áreas do mundo que hoje parecem arruinadas.” Mensagem Como se vê, Hobsbawm, em geral, não se mostra satisfeito com a realidade predominantemente capitalista e americana. Imputa-lhe, direta ou indiretamente, os principais males do mundo contemporâneo: desigualdade, desemprego, desumanização. Ainda que alimente essa obsessão, um tanto quanto cega, para com os mesmos alvos (EUA e Das Kapital), ele acerta nas críticas e desperta a audiência para absurdos tão evidentes do mundo de hoje. “Se eu me arrependo? Não, não creio. Tenho plena consciência de que a causa que abracei revelou-se infrutífera. Talvez não devesse ter seguido por esse caminho. Mas, por outro lado, se os homens não cultivam o ideal de um mundo melhor, eles perdem algo. Se o único ideal dos homens é a busca da felicidade pessoal, por meio do acúmulo de bens materiais, a humanidade é uma espécie diminuída.” “É muito difícil, com uma diferença de oitenta anos, colocar-me na pele de uma pessoa para quem minha experiência de vida não passaria de uma história antiga. Tal como para mim as Cruzadas foram uma história antiga... Seja como for, espero que possamos encontrar uma sociedade que esteja à altura de nossas esperanças e aspirações. Isto é algo que todo mundo merece ter no século XXI.” |