Capa da edição em papel (set/out. 1998)

Esta, que foi minha primeira coletânea de artigos, surgiu da necessidade de divulgar meu trabalho como colunista incipiente, lá pelos idos de setembro/outubro de 1998. Era o Gerald Thomas, ao classificar meu texto Ratinho — o homem que não leu nenhum livro inteiro como "genial", quem me incitava a um esquema de divulgação "massiva", anunciando (inclusive) almoços com os bambas do jornalismo brazuca.

A profecia de consagração não se cumpriu, tendo o teatrólogo desvanecido com suas promessas e sua empolgação impotente, sem deixar rastro. Ficou, no entanto, essa coleção honesta e suada de dez peças, chamada "Crônicas da Primeira Fornada". Peças, no geral, desconjuntadas, mas, no particular, absolutamente válidas.

Voltemos, agora, no tempo para que se esclareça o começo dessa história.


Santa Rita de Sampa (17-08-97)


Foi num domingo de grande inspiração matinal que, encantado com o novo CD de Rita Lee, compus um comentário detalhado sobre o álbum, tipo faixa-a-faixa, que tratei de enviar-lhe por e-mail. Já havia ensaiado contatá-la outras vezes, mas sempre cegamente tomado pelo palavreado monocórdio, idolátrico, típico dos fãs: você pra mim é isso, aquilo, aquilo outro; tal disco representa um momento único na minha biografia; tal canção me remete a uma situação assim, assado — enfim, blá-blá-blá elogioso, porém autocentrado, que pouco ou nada interessa ao criador, ao homenageado.

Santa Rita de Sampa, esse texto, no entanto, embora elogioso e carregado, vinha permeado de idéias, de interpretações e de percepções que encantaram e conquistaram a realizadora. A ponto de Rita Lee me responder, dizendo-se "destrinchada como nunca em sua vã filosofia havia sonhado". Afirmando, ainda, generosíssima, que eu sabia mais que ela mesma sobre o referido álbum...

Fui a nocaute.

Rita Lee por Bob Wolfenson (1997, no encarte de "Santa Rita de Sampa")

Assim, embora destoasse do propósito fortemente jornalístico da coleção, decidi por incluir "Santa Rita de Sampa" em "Crônicas da Primeira Fornada". Como desconsiderar esse incontestável marco na minha carreira de resenhista musical? Como olvidar o maior reconhecimento que jamais recebera de um musicista?

Da Importância das Grandes Personalidades (05-10-97)

Paulo Francis (revista República, fev. 1999)

"Da Importância das Grandes Personalidades" foi minha primeira tentativa de impressionar Sérgio de Souza, editor de Caros Amigos, revista que eu lia, desde o primeiro número, vorazmente. Apoiado nas recepções de Rita Lee (vide parágrafos acima) e de Luís Nassif (vide episódio A Poli como Ela é...), achava-me a beira de estourar como novo intelectual na praça. Um tanto quanto insolente, mandei (ao Sérgio) uma carta, telefonando de tempos em tempos para cobrar uma posição — baseando-me sempre nas minhas precedentes obras-de-arte (incluída aí também uma produção um tanto quanto vetusta: Quem acredita em Michael Jagger?).

O senhor de Souza propôs, então, que eu elaborasse um texto completamente novo, que serviria de base para um futuro voto de Minerva. Uma coisa atual, como que para publicar, com algum compromisso com a Ética. Ética? A qual ética ele se referia exatamente? Confundiu-me um bocado.

Ainda assim, resoluto, depois de três ou quatro esboços, cheguei a um manifesto desiludido para com os ídolos do momento. Falei da derrocada de grandes ícones e da ausência de líderes "como os de outrora". Acentuava, no fundo, a saudade e a falta que sentia de ler o Paulo Francis às quintas e aos domingos. O resto, se formos analisar, é retórica. Mas vale. Bem rebuscado, ficou como um dos poucos artigos que assinei em primeiríssima pessoa.


Através dele, afortunadamente, aproximei-me de Pena Schmidt — o patrimonial produtor de MPB Rock, hoje descrente dos novos ritmos. Pena mostrou-se tocado pela sinceridade de meu escrito apocalíptico e, nesse impulso, me transmitiu serenidade e certeza; "é da sobrevivência da raça", justificou amável.

Valéria Piassa Polizzi e a Geração dos Anos Noventa (18-02-98)


"Valéria Piassa Polizzi e a Geração dos Anos Noventa" é sobre um livro do qual me senti cúmplice. A Valéria tinha me aparecido pela televisão, falando sobre infidelidade e araras-azuis. Segura e lúcida, acabou me seduzindo com suas falas. Para me render ao seu livro, foi um passo. Livro que não era nenhuma obra-de-arte, deixe-se claro. Tratava, porém, da minha geração e isso, pelo menos na literatura que eu podia encontrar, era uma total novidade.

Entendendo ou não a mensagem da autora, enviei-lhe uma carta apaixonada (tanto quanto se pode apaixonar por uma escritora), em que lhe transmitia minha impressão sobre sua história e sobre como esta se relacionava com a minha própria. Havia, de algum modo, naquele começo de ano, elegido a Valéria como minha porta-voz.

Nunca soube se leu minha carta. De qualquer jeito, organizei minhas ruminações em "Valéria Piassa Polizzi e a Geração dos Anos Noventa" — o qual fez chorar uma amiga próxima, a Fabiana Carvalho, que se mostrou brutalmente identificada com esse meu desabafo sentimental (e, em certo grau, nostálgico).

Capa do livro da Valéria (por Miadaira e Isabel Carballo)

Crises na Sociedade Universitária (23-06-98)

"Crises na Sociedade Universitária" encerra esse pequeno ciclo de incursões assaz espontâneas e panfletárias. Depois dele, a produção de artigos se daria de forma bastante metódica.

Carta de Arnaldo Niskier (ago. 1998)

"Crises", uma crítica irrestrita ao Ensino Superior, teve como ponto-de-partida a minha passagem pela Filosofia da USP, no primeiro semestre de 1998. O estudo das ditas Humanidades tinha, para mim, sempre sido um sonho, um ideal. Quando, finalmente, pude realizá-lo, constatei que não era nada daquilo que eu esperava. Descobri, estupefato, que a aventura do conhecimento acontece no espaço e no tempo solitários de cada um de nós; nunca numa sala de aula lotada ou em imersões grupais. (Pelo menos, para mim.) Descobri, orgulhoso, que o único conhecimento que me interessava era o que eu podia adquirir por vias próprias — como explico num e-mail ao Paulo Salles, anterior a (e gênese de) "Crises na Sociedade Universitária".

Portanto, num certo sentido, esse trabalho se colocaria como contraponto a A Poli como Ela é... — dado que era uma avaliação das faculdades de humanas, também afundadas em vícios e falhas (como as de exatas).

Afanei uma epígrafe em que Olavo de Carvalho citava o professor Oswaldo Porchat e mandei brasa. Conquistei Roberto Macedo, o educador e colaborador de O Estado de S. Paulo. Empolguei Arnaldo Niskier (então presidente da Academia Brasileira de Letras), que me enviou uma carta, e Renato Pompeu que, mais tarde, saudou minha posição isenta e abrangente ("tanto quanto possível"), revelando sua intenção de me entrevistar pelo Jornal da Tarde e de me ver em Caros Amigos. (Quem diria...)


País do Futebol (14-07-98)

"País do Futebol" tem um ar de manifestação cívica, misturada a indignação e revolta. Vi, na final contra a França, na Copa de 98, o retrato de um Brasil capenga e desorientado. Achava que inovaria horrores nos paralelos e nas similaridades entre a nossa seleção e o povo do nosso país.

Desta vez, Pena Schmidt caiu de pau, apedrejando meu pessimismo e minha inclemência. Para o meu desgosto e raiva, proclamava: "E viva o axé, o forró, o futebol, a macumba, a TV de massas e a falta de raízes e princípios que imperam sobre as ruínas de uma herança que não pega, como certas leis." Respondi à altura, bem naquele estilo que poderia ter me rendido uma continuação do artigo.

Torcida na Copa da França de 1998 (Agência Estado)

Mais de Cento e Sessenta Milhões de Ronaldinhos (21-07-98)

Ronaldinho na Copa da França de 1998 (Agência Estado)

Inconformado com as insinuações e as revelações em torno do escrete brasileiro, acompanhei o desenrolar da "vergonha" futebolística da Copa pelos jornais. Tanto pesquisei o episódio da venda do caneco à Nike, que o artigo "Mais de Cento e Sessenta Milhões de Ronaldinhos" veio ao mundo de forma natural, quase que por geração espontânea. (O que me permite concluir que: dessa iniciativa, dessa ânsia de opinar sobre o fato semanal, nasceu a minha coluna. De repente, lá estava eu montando minha lista de destinatários e estabelecendo uma periodicidade semanal para esses meus escritos.)

Ainda remoendo os lamentáveis episódios da competição ludopédica, quis mostrar que não passávamos de um bando de Ronaldinhos: convulsionados, imaturos e ignorantes. Sem esperança ou salvação, se continuássemos acomodados. Bem na minha linha "larga a mão de ser idiota (ô leitor) e vê se abre o olho" — que eu ainda retomaria muitas vezes ao falar de outros símbolos e de outras manifestações nacionais.


Paulo Coelho e a Loukura Kontrolada de Veronika (10-08-98)

"Paulo Coelho e a Loukura Kontrolada de Veronika" foi meu mergulho particular no universo dito fascinante e irresistível do mago. Precisava de tempo para meditar a respeito do tema da loucura e do amor, abordados na obra. Como era a primeira vez que eu ia resenhar um livro, com rigor e serenidade supostamente literários, dispus de duas semanas (ao invés de uma) para elaborar uma apreciação satisfatória da matéria.

A história de Veronika era boa, mas, pelo que me lembro, tremendamente mal contada, cheia de vazios e atropelos. Não tive pena e reduzi a Loukura do Koelho a uma veleidade de escritor de segunda. Acabei dirigindo-lhe ataques um tanto quanto pessoais, embora objetivasse criticar o livro; temi uma maldição ou um pito que pudesse me desviar do caminho do colunismo.

Era algo que continuaria me afligindo nos textos seguintes: Conseguiria terminar (os textos)? Conseguiria manter a periodicidade? Conseguiria abordar o assunto em profundidade, sem soar pretensioso, leviano ou ridículo? Alguém teria interesse pelos meus escritos? Aonde isso tudo iria me levar?

Capa de "Veronika Decide Morrer" (a partir de "La cura della follia", de Bosch, na concepção de Christina Oiticica)


Os Comparsas de Motoboy Motoca (17-08-98)

Motoboy Motoca no Jornal da Tarde (ago. 1998)"Os Comparsas de Motoboy Motoca" surgiu como idéia a partir das leituras envolvendo o caso do brazilian serial killer. Penso que as causas apontadas e as explicações mais estapafúrdias (de psicólogos e afins) para o comportamento e os crimes de Francisco de Assis Pereira, à época, quase que me obrigaram a redigir uma visão pessoal das mortes e dos envolvidos. Conforme anuncia o título, pretendi examinar cada um dos setores que supunha co-responsáveis pelo massacre. Dadas as diversas versões publicadas na Imprensa, a começar pela da família do homicida e a terminar pelas reportagens inescrupulosas de Veja, foi possível culpar a todos (sem exceção) ou, pelo menos, censurar as atitudes de uma grande maioria (mal-intencionada). Concluí que, num caso absurdo desse, a eleição de um bode expiatório não exime a culpa de ninguém, nem de nada — apenas simplifica as investigações e os julgamentos, tranqüilizando verdadeiros comparsas.

A "Caros Amigos" de setembro de 1998, em que se vê (no topo) a chamada de capa para "Os Cúmplices do Motoboy Assassino", por José Arbex Jr.Mereci, por essas e por outras razões, um "super" de José Truda Pallazzo Jr., o ambientalista e ecólogo, presidente da International Wildlife Coalition, também colaborador de "Caros Amigos".

Aliás, voltando à revista, um mês depois da divulgação desse meu escrito, surpreendeu-me uma matéria de José Arbex Jr. com o seguinte e sugestivo título: "Os Cúmplices do Motoboy Assassino" — enumerando coincidentemente quem ele considerava cúmplice do Maníaco do Parque, ou seja: a Sociedade, o Machismo, as Mulheres Nuas, a Banalização do Mal... 

Nunca mais li nada assinado por esse sujeito.


O princípio de Inutilia Truncat aplicado ao affair Clinton (25-08-98)

Bill Clinton (no JT, ago. 1998)"O Princípio de Inutilia Truncat aplicado ao affair Clinton" foi uma reação ao clima de fofocagem e de alcovitice cultivado durante o julgamento do presidente dos Estados Unidos por conta de suas "felações impróprias" com Monica Lewinsky. De uma hora para outra, publicações ditas sérias passaram a remexer os pormenores e as movimentações lascivas de Clinton e seu charuto, no institucionalmente licencioso Salão Oval. E novamente as interpretações e explicações que não levavam a nada (de consistente) e que só faziam me irritar — culminando com a eleição de Hillary Clinton para a cadeira de mulher feminista exemplo. Sem falar de Bill, posando e justificando sua fama de mandatário banana.

Monica Lewinsky (na Reuters, ago. 1998)Mostrei o quanto éramos idiotas em pretender que figuras dessa estirpe tivessem qualidades morais e condutas modelares — apenas por ocupar a posição que ocupavam. Fora que me parecia uma estupidez tremenda debater escolhas tão pessoais e tão americanas através de todas as publicações diárias, semanais e mensais do Brasil (!), que não tinha nada a lucrar com esse bafafá.

Olavo de Carvalho classificou minha crônica como "muito boa", assinalando que a "era dos falsos heróis" começava a partir do século XVIII e não antes (como eu sugeria no meu comentário).

 


Os Arquivos-X e a Predição Linear Hollywoodiana (01-09-98)

Scully (na Folha, ago. 1998)"Os Arquivos-X e a Predição Linear Hollywoodiana" nasceu do meu desgosto com o filme que vinha para resgatar o prestígio da Ficção Científica. Eram tantos os entusiastas, dentre os meus amigos, que embarquei nessa estréia como quem embarca numa odisséia.

Não acreditei nos clichês e na trama tão pouco inspirada. Era mais uma historieta sobre ETs encontrados em algum depósito perdido nas areias dos Estados Unidos. Era mais uma historieta sobre sociedades secretas que pretendiam saber mais do que toda a Ciência e todos os grandes estudiosos juntos. Era mais um filmeco com protagonistas insossos, com uma trama metida a emocionante e com um desfecho mais que manjado.

Mulder (na Folha, ago. 1998)Era mais uma perda de tempo e eu não deixei por menos. Perseguindo uma certa abrangência, tratei de incluir na minha crítica uma gama larga de produções que só faziam se repetir na última década, chamando o espectador de quadrúpede desmemoriado. Pas moi.

Marcelo Brisac, meu colega de Poli, defensor do que chamou de "simpático Fight the Future", respondeu-me com insultos à minha pretensa sapiência científica.


Ratinho — o homem que não leu nenhum livro inteiro (09-09-98)

É sabida e notória, das pessoas próximas a mim, a ojeriza que sinto pelo universo televisivo, todas as suas degenerescências e desdobramentos. Logo, o tema do Ratinho serviu como gancho para eu expor meus pontos-de-vista mais pessoais acerca da telinha, de seus males e daqueles que convivem com ela.

Não parti, entretanto, para um resumo desinformado e amadorístico do fenômeno em torno do personagem inventado por Carlos Massa. Na realidade, senti-me inclinado a opinar sobre o tema quando peguei, pela metade, uma entrevista com o Ratinho, em que ele defendia uma televisão mais popular, menos burguesa e elitista. Resolvi pesquisar o rato nas revistas que noticiavam seu contrato com a rede de Silvio Santos e acabei no texto em que tento resumir tudo o que houve (por trás do contrato milionário) e tudo o que o Ratíssimo representa.

Ratinho em seu programa de televisão (SBT On Line)
Ratinho com seu cassetete (Veja)

Por ser tema recorrente e atual (à época), decidi por encabeçar minha primeira coletânea com esse texto. Foi ao mesmo tempo, introdução e chamariz, apresentação e promoção do meu colunismo. Ainda que raramente tenha voltado a analisar manifestações tão populares quanto, "Ratinho — o homem que não leu nenhum livro inteiro" foi, por força dos acontecimentos, marco e divisor d’águas.

Para terminar, espero que esta "Primeira Fornada" lhes agrade e lhes desperte para outros ramos da minha ocupação de escrevinhador (também presentes nestas páginas). Agradeço, desde já, prováveis observações e comentários.


J. D. Borges

8 de agosto de 1999.

(Esta história continua em Catorze Semanas de Colunismo Exacerbado.)